Judiciário
Assédio com teor sexual praticado pelas redes sociais pode ser considerado crime?
A lei Nº 13.718, de 24 de Setembro de 2018, trouxe significativas alterações ao Código Penal Brasileiro, no que diz respeito ao Título VI – dos crimes contra a dignidade sexual –, dentre elas, passou a tipificar no Artigo 215-A, do Capítulo I, o crime de importunação sexual, in verbis:
“Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.”
Tal dispositivo legal também revogou expressamente o art. 61 do Decreto-Lei nº 3.688/41 (Lei das Contravencoes Penais), que cuidava da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor. E, nesse ponto, questiona-se em que medida tal revogação foi acertada.
De certo que essa tipificação foi impulsionada pelo expressivo número de casos de ataques ocorridos no interior de transportes coletivos públicos em São Paulo, onde, diversas vezes, homens ejacularam em mulheres, humilhando-as e violando seus corpos e suas liberdades de transitarem livremente sem serem importunadas ou sexualizadas para satisfação de prazeres sexuais desses agressores.
Antes da entrada em vigor de tal dispositivo jurídico, em casos como esses, as condutas do agressor poderiam ser enquadradas ora na contravenção penal supramencionada – importunação ofensiva ao pudor – a qual era cominada apenas pena de multa, ora no delito de menor potencial ofensivo denominado de “ato obsceno”, cuja pena cominada era de três meses a um ano de detenção. Evidentemente ambas as penas eram completamente desproporcionais quando aplicadas a condutas como a descrita anteriormente.
Sabe-se que o crime de importunação sexual estará configurado sempre que alguém pratique ato libidinoso contra outra pessoa sem a sua concordância. Mas o questionamento que trago hoje é: Este crime pode ser configurado quando praticado por meio da internet? Quando uma mulher recebe em suas redes sociais mensagens intimidantes e abusivas, com conteúdo sexual indesejado, inclusive, por vezes fotos e vídeos do agressor praticando atos libidinosos, como classificar tais condutas criminalmente?
Nesse ínterim, trago dois possíveis posicionamentos:
No primeiro, se considerarmos a descrição das condutas, o núcleo verbal do antigo Art. 61 da Lei das Contravencoes Penais era “importunar”, que, traduzido em sinônimos, significa perturbar, incomodar, atormentar. Já no atual delito de importunação sexual, temos o núcleo verbal “praticar” – contra alguém ato libidinoso -, nesse caso, para Bitencourt (2019) a configuração de tal conduta exige um mínimo de contato físico ou presencial com a vítima.
Dessa forma, pode-se pensar que talvez tenha sido um equívoco do legislador a revogação da infração da importunação ofensiva ao pudor já mencionada, posto que nessa, bastava a importunação com intuito sexual em si para estar configurado a infração, não sendo necessário, pois, a prática de um ato libidinoso em face da vítima.
Por outro lado, Guilherme Nucci (2019) preceitua que o crime de importunação sexual será praticado por “Qualquer um que realize ato libidinoso com relação a outra pessoa (com ou sem contato físico, mas visível e identificável)”. Desse entendimento, pode-se concluir que mesmo no âmbito virtual, se a vítima for exposta a prática do ato libidinoso, direcionado a ela, e violando dessa forma sua liberdade e dignidade sexual, estará, portanto, praticado tal crime. Então, esse restaria consumado, por exemplo, por meio de encaminhamento de vídeos ou imagens do autor praticando atos libidinosos em face da vítima, sem o seu consentimento, objetivando satisfazer sua lascívia.
Ocorre que, mesmo filiando-se a esse segundo posicionamento, quando estivermos diante de uma situação onde o autor realiza investidas sexuais através de mensagens de texto ou arquivo de áudio com teor sexual, vexatório e intimidante para a vítima, temos uma verdadeira lacuna jurídica, posto que a infração de “importunação ofensiva ao pudor” foi revogada expressamente, como outrora já mencionado.
Temos então um impasse, que leva a conclusão de que, no que concerne a tipificação de delitos que violam a dignidade sexual, o Brasil ainda tem muito a evoluir juridicamente para de fato resguardar as vítimas de todos os atos ainda praticados em decorrência do machismo estrutural e da expressiva sexualização e objetificação dos corpos das mulheres.
Importante salientar que é um grande equívoco acreditar que apenas homens com distúrbios psicológicos praticam tais condutas pela internet. Essas condutas nascem de uma sociedade ainda machista e com traços patriarcais onde os homens creem que as mulheres estão sempre disponíveis e interessadas em um contato sexual com pessoas do sexo oposto, seja pessoal ou virtualmente.
E não é exagero tipificarmos tais condutas como criminosas, afinal, enquanto mulheres se sentirem constrangidas a aceitarem uma investida sexual, por não saberem como recusar, ou a silenciarem-se diante de tais abusos, por envergonharem-se e sentirem-se culpadas pela situação a que foram submetidas, estaremos perpetuando a verdadeira cultura do estupro.
jusbrasil