Internacional
Livro conta em quadrinhos história de caçadores de nazistas
Romance gráfico narra o famoso tapa na cara que a jovem Beate Klarsfeld deu no então chanceler da Alemanha Ocidental em 1968, além de sua luta, ao lado do marido, contra a presença de nazistas no governo
É manhã de 7 de novembro de 1968. Beate Klarsfeld, de 29 anos, usa um crachá de imprensa para furar a segurança e entrar na conferência em Berlim da poderosa União Democrata Cristã (CDU), do então chanceler federal Kurt Georg Kiesinger.
Depois de distrair o segurança, ela caminha com convicção pelas fileiras lotadas de alguns dos políticos mais importantes da Alemanha Ocidental. Antes mesmo que alguém entendesse o que estava acontecendo, ela chega a Kiesinger e lhe desfere um sonoro tapa, depois de gritar:
“Nazista, nazista!”
A cena foi capturada por cinegrafistas e fotógrafos de todo o mundo. Ela havia sido bem pensada por Beate e seu marido, Serge Klarsfeld, para chamar a atenção para a presença de ex-membros do regime de Adolf Hitler, como Kiesinger, entre as autoridades da Alemanha Ocidental.
O ato de Beate Klarsfeld e a sua luta ao lado do marido em busca de justiça para os crimes nazistas são recontados agora em quadrinhos: Klarsfeld – un combat contre l’oublie (Klarsfeld, uma luta contra o esquecimento, em tradução livre).
O romance gráfico foi escrito por Pascal Bresson e ilustrado por Sylvain Dorange e, além do original em francês, já tem versões em inglês (For justice – The Serge and Beate Klarsfeld story) e alemão (Beate und Serge Klarsfeld, die Nazijäger)
Um tapa que mudou a história
“Eu sou Beate Klarsfeld e sou casada com Serge Klarsfeld”, afirma ela, quando interrogada pela polícia. “E estou indignada com a injustiça que é o fato de velhos nazistas escaparem sem punição na Alemanha.”
O romance gráfico conta não apenas a história da bofetada na cara, mas também a de Beate e Serge Klarsfeld e sua luta por justiça. O casal nunca aceitou que criminosos de guerra nazistas simplesmente escapassem e seguissem nas esferas mais altas do poder.
A bofetada valeu a Beate pena de prisão – uma sentença que nunca foi cumprida. “No final, fui condenada a quatro meses de liberdade condicional”, diz Klarsfeld à DW. “Quando Willy Brandt chegou ao poder, em 1969, tudo isso foi anulado.”
A corajosa ação chamou a atenção da imprensa alemã e se tornou um prelúdio para numerosas campanhas contra antigos nazistas que ocupavam cargos governamentais na Alemanha Ocidental. Em 1978, o então governador do estado de Baden-Württemberg, Hans Filbinger, foi forçado a renunciar por causa de seu passado nazista.
O chanceler Kurt Georg Kiesinger não era o primeiro nazista a ter um alto cargo no governo da Alemanha Ocidental. O chefe de gabinete do primeiro chefe de governo do pós-guerra, Konrad Adenauer (1949-1963), era Hans Globke, um advogado administrativo fiel ao partido e coautor das racistas Leis de Nurembergue do regime nazista.
Kiesinger era um membro de alto escalão do partido nazista, sempre leal a Hitler, e foi chefe do Departamento de Radiodifusão do Terceiro Reich. Após a desnazificação formal, os Aliados o liberaram por ter tido “papel passivo” no regime. A partir de 1966, o político conservador passou a liderar os assuntos de Estado como o terceiro chanceler federal da República, cargo que ocupou até 1969.
Como cinema em páginas
“Meus textos são como roteiros de cinema”, diz o autor Pascal Bresson. “O livro é como cinema no papel.”
A ideia, conta ele, é que mesmo os leitores mais jovens sejam rapidamente atraídos pela narrativa, que também cobre a trágica história familiar de Serge Klarsfeld.
O pai de Serge Klarsfeld foi deportado pelos nazistas para o campo de concentração de Auschwitz e assassinado lá. Serge conseguiu se esconder da Gestapo de Paris com sua mãe e duas irmãs.
Ele eventualmente fundou e liderou o grupo Filhos e Filhas de Deportados Judeus da França (Association des fils et filles des déportés juifs de France), que documentou casos de atrocidades nazistas e localizou ex-colaboradores alemães e franceses para serem processados.
Verdades inconvenientes
Como ativista política, Beate Klarsfeld já havia escrito vários artigos sobre o passado nazista de Kiesinger, o que não havia atraído muita atenção. Poucos estavam interessados em ouvir sobre as vidas de ex-nazistas. Isso mudou ligeiramente em 1968, um ano tumultuado repleto de protestos e manifestações estudantis.
Mas mesmo depois, os partidos conservadores, como a CDU e outros grupos de direita, preferiram não ter uma discussão aberta. A população queria desfrutar da prosperidade do milagre econômico da Alemanha Ocidental, e verdades incômodas sobre nazistas não tinham lugar nessa nova sociedade.
Estava claro para o casal Klarsfeld que eles não podiam combater essa apatia política com panfletos e ataques verbais aos protestos. “Tínhamos informações suficientes sobre o passado nazista de Kiesinger, que também publicamos. Mas ninguém estava interessado”, recorda Beate. “Para expor um escândalo, era preciso responder com um escândalo.”
Uma história de amor única
Além de contar esse evento histórico, o romance de Bresson e Dorange é também uma história de amor entre uma protestante alemã e um judeu francês: uma relação íntima franco-alemã em uma época em que as relações entre os países eram intensas.
“O que mais gostei foi a relação deles: uma alemã e um judeu, isso não é comum”, afirma Bresson, que já escreveu uma biografia de Simone Veil, ex-ministra francesa que sobreviveu ao Holocausto. “Eles se uniram para encontrar assassinos de vítimas judias. Eles só queriam verdade e justiça.”
A história de amor do casal Klarsfeld está no romance gráfico. Considerando a cautelosa aproximação política entre a Alemanha e a França após 1945, tal relação era incomum entre uma mulher alemã protestante e um judeu francês. Beate disse que ela foi calorosamente recebida na família de seu marido. “Minha sogra havia estudado na Alemanha”, conta ela à DW. “Ela amava muito os alemães e não tinha nenhum preconceito contra mim.”
Na época, Klarsfeld trabalhava no Escritório da Juventude Franco-Alemã como secretária. Sua bofetada pôs um fim a essa carreira – ela foi demitida do emprego. No entanto, seu ato entrou para os livros de história. Em 1975, uma lei que obrigava a Alemanha Ocidental a levar os criminosos nazistas à Justiça foi aprovada pelo Parlamento alemão. Ela permanece em vigor até hoje.
O casal Klarsfeld também recebeu inúmeros prêmios por seu trabalho de ativismo. A Unesco os designou “embaixadores honorários e enviados especiais para a educação sobre o Holocausto e a prevenção do genocídio” em 2015, e eles receberam as prestigiosas Ordem do Mérito da Alemanha e Legião de Honra da França.