Internacional
“O presidente do Afeganistão é um traidor da pátria”
Após negociar com Talibã por 11 meses em Doha, ativista Fatima Gailani está frustrada com o caos que se sucedeu à retirada das tropas da Otan. Mas retornará ao país para lutar pelos direitos das mulheres e das minorias
Poucos têm uma percepção tão profunda da política e dos conflitos do Afeganistão quanto Fatima Gailani. Ela foi umas nas únicas quatro mulheres engajadas nas conversações de paz com o Talibã em Doha, capital do Catar, nos últimos 11 meses. Depois que Cabul caiu nas mãos dos radicais islâmicos em 15 de agosto, porém, esses esforços parecem parte de um passado distante.
Originária de um influente família religiosa, a ex-presidente da Sociedade do Crescente Vermelho tem mestrado em estudos islâmicos e jurisprudência do Muslim College de Londres. Seu pai foi um dos líderes mujahedin afegãos que lutaram contra a ocupação soviética na década de 1980.
Depois que, no fim de 2001, os talibãs foram derrubados pela intervenção militar internacional liderada pelos Estados Unidos, Gailani tornou-se comissária constitucional, participando da elaboração da nova lei fundamental da República Islâmica do Afeganistão.
Com a retomada de Cabul e do poder pelos talibãs, contudo, aquele Afeganistão e sua Constituição deixaram de fato de existir. Em sua entrevista exclusiva à DW, a partir de Doha, Fatima Gailani ainda estava tentando processar os acontecimentos recentes. Acima de tudo, atribui a culpa a dois homens.
“Presidente Joe Biden, o que o senhor fez com o Afeganistão foi muito, muito inconsequente. Por mais que culpemos o presidente afegão Ashraf Ghani – e eu o chamo de traidor da nação –, eu também diria ao Sr. Biden que não é assim que uma superpotência deve se comportar.”
A entrevista foi conduzida pouco antes do atentado suicida no aeroporto de Cabul, que deixou mais de 100 mortos nesta quinta-feira (26/08).
DW: Quais são seus sentimentos, no momento?
Fatima Gailani: Estou ainda totalmente em choque, porque estávamos tão perto. Estávamos realmente perto de ter uma transferência de poder ordenada. E aí o Sr. [presidente afegão Ashraf] Ghani arruinou tudo para salvar o dinheiro dele. A partida súbita dele causou o que se vê hoje.
Estão circulando muitos boatos, mas há provas reais de que Ashraf Ghani e seus associados mais próximos, como o ex-assessor de segurança Hamdullah Mohib, levaram mesmo consigo baús cheio de dólares?
Diga-me você! Tem que ser investigado. Mas por que fugiram com tamanha pressa, se tinham a garantia de que os talibãs não entrariam em Cabul antes de duas semanas? A única coisa que eu quero transmitir aqui, é que esse traidor não deveria escapar impunemente.
É realmente justo colocar toda a culpa em Ghani?
Olhe, ninguém pode pôr toda a culpa numa única pessoa. Há cadeias de culpa pelo que vem acontecendo no Afeganistão, nas últimas quatro décadas de guerra e violência. Mas essa última situação caótica, esse colapso, foram definitivamente culpa dele. Ele traiu seu país, traiu gente muito próxima de si. Ele poderia ter esperado, ter deixado o país de modo ordenado, e teria ocorrido uma transferência de poder. O que ele fez foi uma desgraça total.
O primeiro passo foi ele colocar um monte de obstáculos na frente dessas conversações [de paz], desde o início, por causa de seu próprio ego e do mundo que ele tinha criado para si. E aí, claro, veio esse fantástico ato de fugir. Só há um crédito que eu poder dar a ele: pela atuação digna de um Oscar de que ficaria até o último minuto. Todo mundo à volta dele acreditou.
A senhora, obviamente, também acreditou nele.
Sim. Eu estava aqui em Doha, e fomos informados passo a passo sobre a lista da delegação que viria para uma transição de poder ordenada, com o [ex-chefe do Alto Conselho de Reconciliação Nacional] Dr. Abdullah Abdullah e o ex-presidente Hamid Karzai, e todos os demais líderes. O plano é que a segurança seria garantida para essa transferência de poder e que a comunidade internacional a testemunharia.
A coisa mais importante naquele momento para todos nós, da equipe de negociações, era só uma: o Talibã tomou o Afeganistão, isso é um fato. Então, como podemos assegurar uma transferência de poder pacífica, que também garanta paz duradoura para o futuro? Queríamos que as coisas avançassem suavemente. Mas aí – ups! – o homem tinha fugido.
As negociações de Doha nunca chegaram a nada substancial. Não era tudo tapar o Sol com uma gigantesca peneira, desde o começo?
Isso, nós nunca vamos saber. Mas se eu tivesse a menor dúvida de que não era uma coisa genuína, eu não teria emprestado meu nome a esse processo de Doha, não mesmo. Em tudo o que tentei fazer pelo Afeganistão, nos últimos 43 anos, eu coloquei a minha honra em primeiro lugar. Quem honra o próprio nome honra o seu país e o seu povo.
Eu acreditava nas conversas de Doha, de verdade. E com isso não quero dizer que os talibãs não fossem difíceis: eles eram. E agora eu sei que eles sabiam que estavam tendo ganhos. Mas do nosso lado, éramos muito sinceros em relação à paz. Não tenho a menor dúvida.
O que a senhora fará, a partir daqui? Vai voltar para Cabul?
Sim. Sabe que eu estou me recuperando de câncer. Não vejo meu oncologista desde 13 de janeiro. Então agora vou simplesmente para Londres encontrá-lo e talvez descansar por umas semanas, porque estou terrivelmente exausta. Mas aí vou voltar para casa, onde estão meu marido e meus dois irmãos.
Como é o Afeganistão a que a senhora vai retornar?
Depende absolutamente do Talibã, em primeiro lugar, e depois da comunidade internacional. O Talibã vai ter que colocar o povo do Afeganistão em primeiro plano, para garantir a paz. Como? Através de um governo genuíno, inclusivo.
Para que ele seja reconhecido pela comunidade internacional, a formação desse governo deve ocorrer fora do país, a fim de que todos possam testemunhá-lo, acreditar nele e selá-lo. Se as embaixadas não reabrirem, o povo vai passar fome; se não houver a garantia da comunidade internacional, o povo vai passar fome. E gente faminta é capaz de tudo, por desespero.
Eu realmente, realmente não quero ver os talibãs patrulhando de carros blindados e o Daesh [termo árabe para o “Estado Islâmico” (EI)] colocando bombas nas ruas. Porque. quem vai morrer? Civis comuns, inocentes, nas ruas de Cabul! Não quero ver isso. Temos mesmo que esquecer quem é o vencedor e quem é o perdedor: tudo com que devemos nos importar é o povo do Afeganistão.
Depois de seus quase 11 meses de contato com a elite do Talibã em Doha: pode-se confiar neles? Eles falam muito de inclusividade e anistia, mas, ao mesmo tempo, chegam relatos fiáveis de atrocidades como assassinatos direcionados e execuções. As palavras parecem não combinar com os atos.
Bem, para ter lei e ordem no Afeganistão, precisamos de um governo em que o povo possa confiar. Essa confiança dos afegãos é que vai colocar água fria no fogo que está ardendo hoje no país; quando eles acreditarem genuinamente em algo, vai haver mudanças. Aí vão se acalmar e dar respaldo ao sistema. Temos que aceitar que o Talibã venceu no plano militar. Mas agora todos nós juntos vamos ter que trazer a paz. Um lado sozinho não tem como ganhar a paz.
Olhe, nós derrubamos um regime, a União Soviética. Mas isso trouxe paz ao Afeganistão? Não, porque era unilateral. E aí veio [a conferência para o Afeganistão em] Bonn, na Alemanha, em dezembro de 2001. Todos nós nos reunimos, o Talibã não estava incluído. Conseguimos a paz? De forma alguma. Por que repetir isso mais uma vez? Já vimos no que dá. Então agora vamos fazer o que é certo.
Vai haver lugar para uma mulher eloquente como a senhora, no futuro Afeganistão?
Olhe, as mulheres do Afeganistão não podem ser ignoradas. Nós sabemos que somos afegãs, que somos muçulmanas; conhecemos os nossos limites, mas também as nossas liberdades. O Afeganistão não pode ir adiante sem as suas mulheres.
Quero estar lá para o meu povo, mas não tenho ambições políticas, desisti disso muito tempo atrás. Mas nunca vou desistir da minha luta pelos direitos femininos e pelas minorias. E isso é uma promessa.
O que diria do vice-líder do Talibã, Mullah Baradar, neste momento?
Vou dizer exatamente o que disse a ele cara a cara em Doha: o futuro do Afeganistão tem que incluir a todos nós, homens e mulheres, todos os idiomas, todos os grupos étnicos, todas as facções do islã, nossos hindus e nossos sikhs. Se queremos alegar ser um país islâmico de verdade, então tem que ser o país que o nosso Profeta nos disse para construir, e não um que estamos interpretando na nossa própria língua.
E o que diria ao presidente dos EUA, Joe Biden?
Eu diria: “Sr. Presidente, o que o senhor fez com o Afeganistão foi muito, muito inconsequente.” Por mais que culpemos Ashraf Ghani – e eu o chamo de traidor da nação –, eu também diria ao Sr. Biden que não é assim que uma superpotência deve se comportar.
E, por favor, publique isso: eu não queria nenhum soldado estrangeiro no Afeganistão. O que eu queria era paz, antes de tudo paz segura, e depois ir aonde quer que se queira. Quando falamos de forças estrangeiras se retirando ordenadamente, não quisemos dizer que os soldados da Otan deviam permanecer pelo resto da vida. Não!
“O senhor assinou um contrato com o Talibã em Doha, com um acerto político como parte dele. Mas onde está esse acerto? Onde está?”