Nacional
Nova agenda regulatória da ANA: expectativas para o setor
Apesar da coerência do novo calendário, aderência às normas de referência ainda é palco para dúvidas
Recentemente, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) publicou nova versão da Agenda Regulatória referente ao calendário do chamado Eixo Temático 5, que trata das normas de referência para o setor do saneamento básico no período entre 2021 e 2023.
A adequação do cronograma se deu, em grande parte, em decorrência dos entraves para contratação de pessoal para estruturação da área e questões orçamentárias[1].
Independentemente de tais entraves, é possível atestar que a agência – ciente dos desafios – vêm lançando mão das ferramentas de participação popular (consultas e audiências públicas) e buscando elaborar robustas análises de impacto regulatório (AIR), com atenção especial às determinações da chamada Lei das Agências (Lei nº 13.848/2019).
Parece-nos que o caminho está absolutamente correto, tendo em vista a necessidade de avaliar as melhores práticas regulatórias, ouvir as entidades fiscalizatórias e garantir a elaboração de estudos técnicos e manuais específicos que irão afiançar o sucesso da regulação no futuro.
Ao todo, a agência prevê a publicação de 19 normas de referência e, de forma geral, o novo calendário aparenta ser mais factível, considerando a complexidade dos temas. Como exemplo, é possível citar o desmembramento das normas referentes à revisão tarifária e modelos tarifários e da norma de referência acerca do conteúdo mínimo dos contratos de programa e concessão (a primeira etapa irá discutir os aditivos aos contratos devido à necessidade de inclusão das metas de universalização, enquanto a segunda parte irá dispor sobre a padronização dos contratos de concessão).
Voltando aos fatos, tem-se que após um ano de promulgação do Novo Marco do Saneamento, somente uma norma de referência (Resolução ANA nº 79/2021 – Norma de Referência nº 01) foi publicada em 15 de junho deste ano, dispondo sobre o regime, estrutura e parâmetros da cobrança pela prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos, bem como os procedimentos e prazos de fixação, reajuste e revisões tarifárias.
Em 17 de outubro, foi encerrado o prazo para recebimento de contribuições no âmbito da consulta pública de uma das mais esperadas normas: padronização dos termos aditivos aos contratos de programa e de concessão para prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário para incorporação das metas previstas no Art. 11-B da Lei nº 11.445/2007 (conforme modificada pela Lei nº 14.026/2020), com previsão para publicação até o final do ano de 2021. Durante o processo de elaboração da norma, a ANA levantou dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) com fulcro à elaboração de estudo para subsidiar a decisão da Diretoria Colegiada da ANA quanto à norma de referência.
O diagnóstico dos contratos de prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário é dramático, mas não surpreendente. A maioria dos contratos (tanto contratos de programa quanto os de concessão) não apresenta metas de universalização em suas cláusulas. Nessa linha, a Nota Técnica nº 03/2021 demonstrou também que a quantidade de contratos de programa sob gestão das CESBs é de 3.926, sendo bastante superior ao número de contratos de concessão (205). Ainda, mais de 2.000 contratos de programa possui vigência após 2033 – prazo limite para universalização dos serviços.
Outro ponto que irá requerer atenção no médio prazo será o nível de discricionariedade adotado pelas agências subnacionais, na linha do que dispõe o inciso IV, §3 do artigo 4º-A. Isto é, ainda não é possível prever de que maneira os entes reguladores irão observar as singularidades locais e regionais mediante a adoção de processos e métodos adequados, bem como de que forma irão conviver harmoniosamente as normas de referência nacional e a regulação local. Será, ainda, que a adoção de normas de referência vai ser efetivamente suficiente para suprir a lacuna de qualificação técnica e orçamentária de muitos municípios?
Ato contínuo, há de se preocupar com a leitura que será feita na ocorrência de inobservância às normas de referência pelos entes titulares e reguladores locais, uma vez que não foram previstas formas de modulação das consequências ou regime de transição específico. Apesar da clara obrigação de aderência às normas de referência, em particular pelo efeito do chamado spending power, nos parece equivocado interpretar objetivamente a aderência integral como condição para o recebimento de recursos federais[2].
Não foi ponderada, até o momento, sistemática para avaliação quanto ao empenho progressivo para implantação das normas de referência ou consideração de aspectos específicos e particulares de cada região (e.g. processo de capacitação de profissionais, dificuldades organizacionais, etc.). Se não mitigado, o risco pode ser de gerar o efeito contrário ao desejado: concentração de recursos nas regiões já estruturadas, mediante o recebimento pelos entes que menos necessitam, em detrimento de facilitar acesso de recursos aos entes federados que apresentam maiores dificuldades.
A própria história do setor de saneamento no Brasil nos ensina sobre a evolução do pacto federativo no país, demonstrando as dificuldades atinentes à gestão dos serviços públicos dadas as dimensões continentais do território e os profundos desequilíbrios socioeconômicos das regiões, como os entraves encontrados pelo próprio Planasa (Plano Nacional de Saneamento Básico). Assim, é necessário compreender a importância da aposta de se colocar a União, mediante as novas atribuições da ANA, como ferramenta essencial ao desenvolvimento do saneamento básico, tendo como modelo setores mais maduros do ponto de vista regulatório.
Por outro lado, diferentemente dos demais setores, o saneamento básico exigirá esforços em um ambiente institucionalmente complexo e que demanda maior envolvimento da União, Estados e municípios na construção perene de soluções lastreadas na cooperação. De maneira diversa das competências atribuídas às demais agências regulatórias, cabe à ANA a missão de determinar boas práticas no setor de saneamento e criar um sistema de governança regulatória.
De forma geral, o universo dos contratos atualmente em vigor reflete um cenário de insegurança jurídica que precisa ser superado para fornecer os necessários incentivos à entrada de novos players no mercado. O aprimoramento dos índices de cobertura e de qualidade dos serviços de saneamento no Brasil bem como a padronização dos instrumentos negociais perpassa o amadurecimento da sistemática de governança atualmente vigente e é inegável a relevância do papel da ANA para tanto.
[1] Quando da aprovação, em março de 2021, da Agenda Regulatória da Agência, a proposta foi aprovada com as seguintes condicionantes: (i) inserção de aproximadamente R$ 10 milhões na PLOA para as despesas e custos relacionados à atribuição regulatória do setor de saneamento; (ii) realização de concurso público para a ANA; e (iii) movimentação de pessoal para atender ao funcionamento dos processos relacionados ao setor.
[2] Nos termos do art. 50: “A alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União serão feitos em conformidade com as diretrizes e objetivos estabelecidos nos arts. 48 e 49 desta Lei e com os planos de saneamento básico e condicionados: III – à observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico expedidas pela ANA”.