ESTADO
Celso Furtado: 100 anos do paraibano que mudou a economia
O renovado debate sobre o papel do Estado na economia, suscitado pelo contexto da pandemia de covid-19, traz ideias do autor de volta para o centro da discussão, no ano de seu centenário.
Quando tinha apenas 17 anos, na Paraíba, Celso Furtado anotou em seu diário: “Hoje eu decidi que vou escrever um livro sobre a história da civilização brasileira.” O que poderia ser um devaneio juvenil se materializou duas décadas depois, quando o pensador publicou, em 1958, Formação econômica do Brasil, maior obra de referência do pensamento econômico brasileiro.
O clássico trouxe um até então inédito entrelaçamento entre história e economia. Furtado analisa os vários ciclos econômicos, do açúcar ao início da indústria, para identificar o cerne do subdesenvolvimento brasileiro. Estava ali a ideia que aprofundaria em quase 30 livros dali em diante: o subdesenvolvimento não era etapa natural de um processo, mas uma realidade perene, derivada da inserção do Brasil e países semelhantes, exportadores de insumos, na economia mundial – a dinâmica “centro-periferia”.
Neste domingo (26/07), é celebrado o centenário de nascimento do economista. Se o calendário de eventos e comemorações, que incluía seminários e quatro novos livros sobre Furtado, foi afetado pela pandemia, a conjuntura trouxe suas ideias de volta para o centro do debate. Durante a crise atual, a atuação do Estado como indutor e planejador da atividade econômica voltou de vez à carga.
Nos Estados Unidos e na Europa, governos lançaram mão de pacotes emergenciais orçados em trilhões de dólares. Mesmo entre economistas liberais, a intervenção estatal foi amplamente defendida nesses países.
“Mas antes mesmo da pandemia, há três ou quatro anos, já discutíamos um retorno do papel do Estado na França e na Europa, pelo que tem sido chamado de ‘políticas orçamentárias’. Além disso, ficou claro para muitos economistas que as políticas monetárias não são tão eficazes sozinhas”, comenta o economista francês Pierre Salama, que foi aluno, assistente e, depois, colega de Furtado em seu tempo como professor na Universidade Paris-Sorbonne.
“Esse retorno do Estado não significa reestatização, não é disso que se trata. É uma intervenção ativa, com políticas industriais inteligentes. Quando olhamos para alguns países asiáticos, percebemos que o intenso crescimento econômico não é resultado só da ação do mercado, mas do acompanhamento desse mercado pelo Estado, com o apontamento das escolhas que os agentes privados devem fazer”, completa Salama.
No Brasil, frente à pandemia, governo e Congresso criaram um orçamento especial de guerra para suspender mão do teto de gastos temporariamente e financiar o auxílio emergencial e a complementação salarial, além de mais linhas de crédito via bancos públicos. Segundo o IBGE, em junho os benefícios ao cidadão alcançaram direta ou indiretamente 104 milhões de brasileiros, quase a metade da população.
Na comparação com as iniciativas estrangeiras, todavia, o aporte ainda é tímido em termos de volume. As medidas tomadas até aqui são reconhecidas pelo próprio governo como muletas no pior momento da crise. O fechamento temporário ou definitivo de 1,3 milhão de empresas até meados de junho, quase todas micro, pequenas e médias, segundo o IBGE, fez surgir um consenso sobre a necessidade de um plano de retomada amplo.
O presidente Jair Bolsonaro tem sugestões de toda parte na mesa, mas convive com o contrapeso de uma equipe econômica criada para resistir ao aumento do gasto público.
Poucos estariam aptos como Celso Furtado, vivo fosse, a opinar na atual encruzilhada. O economista atuou, no início dos anos 1950, na criação e aplicação das técnicas de planejamento econômico da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), das Nações Unidas.
Em seguida, frequentou, como diretor do BNDES e depois ministro de Estado, o dia a dia de quatro governos: Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart e José Sarney. Exilado entre os tempos de serviço prestados para os dois últimos presidentes listados, esteve por 20 anos à frente das cátedras de Economia do Desenvolvimento e Economia Latino-Americana da Universidade Paris-Sorbonne, na França.
A despeito do currículo, não surpreenderia se Furtado fosse rechaçado hoje em dia por razões políticas. Foi o que aconteceu em 1964, quando seu nome constava na primeira lista de indesejados pela ditadura militar, e Furtado teve de deixar o país. No dia seguinte à sua cassação política, recebeu convites para lecionar em três prestigiadas universidades dos Estados Unidos: Harvard, Columbia e Yale, para onde acabou indo. Um ano depois, o presidente francês de direita, Charles de Gaulle, autorizou sua contratação para a maior universidade de seu país.
Pierre Salama, que testemunhou enquanto estudante a chegada de Furtado à França, conta que as ideias do brasileiro revolucionaram a compreensão de desenvolvimento econômico na França. Até então, os franceses que estudavam o tema focavam as ex-colônias africanas, razão pela qual eram oficialmente chamados de “professores de colônias”. Não consideravam, por exemplo, a possibilidade de economias industrializadas conviverem de forma perene com o subdesenvolvimento, como é o caso do Brasil e de outras economias latino-americanas.
“Por outro lado, para os que eram de esquerda a única razão do subdesenvolvimento era o saque dos países do Terceiro Mundo. Não havia uma abordagem científica. E então chega Furtado e nos explica. Foi estrondoso, e ele fez muito sucesso”, já havia dito Salama à revista Cadernos do Desenvolvimento anos atrás.
Consagradora, a passagem pela Sorbonne duraria 20 anos. O período representou um doloroso hiato para o economista acostumado à dupla função de intelectual e estadista. “Ele ficava com a cabeça no Brasil”, lembra a tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Furtado. Era difícil estar exilado para quem, até pouco, formulava políticas prioritárias de governo.
Foi o caso da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959. Elencado por JK no mesmo nível de prioridade que a construção de Brasília, o projeto tinha o objetivo de promover e coordenar o desenvolvimento da região. Além da industrialização, Furtado propunha o fim do modelo latifundiário monocultor, mais propenso a riscos climáticos, e um desenho econômico adaptável à seca – na contramão das “políticas hidráulicas” que ocupavam o debate.
A iniciativa despertou grande interesse internacional. Em 1961, Furtado foi a Washington como superintendente da Sudene para se encontrar com o então presidente dos EUA, John Kennedy, que decidiu apoiar um programa de cooperação com o órgão. Embora exista até hoje, a iniciativa foi relegada a segundo plano durante a ditadura militar e não recuperou o protagonismo conferido sob a gestão do economista.
“Para ele, o conhecimento só servia se fosse para prestar serviço à comunidade”, comenta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Furtado olhava as formas como a economia se relacionava com a vida social, para pensar em que medida poderia beneficiar a vida das pessoas em sociedade. Sua vida sempre se confundiu com a história da sociedade brasileira”, diz.