Internacional
Larry Flynt (1942-2021): Rei do Pornô e Herói da Liberdade de Imprensa
Controverso editor protagonizou um dos mais célebres julgamentos da Suprema Corte dos EUA
Larry Flynt, norte-americano, natural de Lakeville, Kentucky, de profissão pornógrafo, conforme autodeclaração, faleceu no dia 10 de fevereiro passado aos 78 anos de idade, de parada cardíaca, no condado de Hollywood Hills, Los Angeles, Califórnia. O de cujus era conhecido por vários feitos no mundo dos negócios relacionado à indústria do sexo, porém ficou mundialmente célebre ao protagonizar um dos mais importantes julgamentos da Suprema Corte dos EUA sobre liberdade de imprensa: Hustler Magazine v. Falwell (1988).
Flynt nasceu numa família de hillbillies paupérrima e na infância trabalhava vendendo bebidas alcoólicas destiladas ilegalmente em seu fundo de quintal. Na idade adulta mudou-se para Ohio e associado ao irmão montou um bar com garçonetes seminuas e apresentações de strip-tease. Para divulgar o empreendimento, criou uma “newsletter” com fotos das garotas que contratava. Esse boletim comercial virou a revista “Hustler”, que originalmente era o nome do estabelecimento.
A publicação tinha circulação restrita no início, até que Flynt, num lance de sorte, conseguiu comprar fotos tiradas clandestinamente da ex-primeira-dama Jacqueline Kennedy Onassis, tal como ela veio ao mundo. A edição vendeu milhões de exemplares, em seguidas tiragens. Até o governador de Ohio foi flagrado comprando um exemplar e quase sofreu um processo de impeachment pelo fato.
O inesperado sucesso chamou a atenção do país todo para a revista, até então marginal. Flynt surfou na onda e, para se diferenciar de publicações de nudez mais suaves como “Playboy” e “Penthouse”, passou a veicular imagens de sexo explícito que muitas vezes expressavam fantasias sexuais bizarras e perturbadoras. A fim de se contrapor ao conteúdo “culto” das rivais, publicava matérias violentamente satíricas do status quo político americano e debochava dos símbolos culturais do país, em charges nas quais o Papai Noel e o Mágico de Oz eram retratados de forma lasciva.
Foi demais para os conservadores americanos e durante a década de 1970 Flynt foi denunciado, processado e preso várias vezes por “obscenidade”. Nos julgamentos, aparecia vestido com camisetas provocativas como “fuck the court” ou comparecia vestido de fralda feita com uma bandeira dos EUA.
Em interrogatórios, respondia frases sem sentido, descrevia atos sexuais explícitos e proferia palavras ofensivas aos magistrados e promotores. Acabou preso também por “contempt of court” (desobediência à autoridade judicial) quando atirou uma laranja em um magistrado. A sua personalidade excêntrica atraía ainda mais publicidade para a revista.
Durante o mandato de Jimmy Carter (1977-1981), a irmã do presidente, Rosalyn, uma cristã fervorosa, tentou converter o famoso publisher ao cristianismo – e conseguiu! Mas o tiro saiu pela culatra, pois Flynt teve a pouco recomendável ideia de publicar mulheres nuas em poses provocativas, sob cenários adornados com imagens religiosas.
Em 1978, quando saía de uma audiência judicial no Estado da Georgia, um atirador escondido a centenas de metros de distância o alvejou, deixando-o eternamente paralítico. O autor do atentado ficou incógnito e impune durante longos anos, até que sua identidade finalmente foi descoberta: Joseph Paul Franklin, um supremacista branco que não suportava as frequentes publicações de sexo interracial da Hustler, particularmente as que exibiam mulheres brancas transando com homens negros. Franklin acabou julgado e condenado à morte por outros homicídios racistas.
Em 2013, às vésperas de sua execução, Flynt fez uma campanha contra a punição capital de Franklin, dizendo-se um radical defensor do banimento da pena de morte (com seu sarcasmo declarou que “no máximo, gostaria de ficar a sós com ele em uma sala, manejando um par de alicates, para retribuir o que ele me fez, mas não quero que ele morra nem quero assistir a sua execução”).
A paralisia fez com que Larry Flynt abandonasse de vez a religião, deixando de acreditar em Deus. Mudou-se para Los Angeles, onde vivia em uma mansão nababesca com a quarta mulher, por quem era loucamente apaixonado, Althea Flynt, uma ex-stripper de seu bar em Ohio. Deprimido e padecendo de dores excruciantes em razão de sequelas do atentado, passou a tomar doses cavalares de heroína, viciando-se juntamente com a sua esposa, que acabou contraindo o vírus do HIV possivelmente quando usava seringas em um período em que Flynt foi internado em hospital psiquiátrico por ordem judicial. Algum tempo depois, Althea morreu afogada na banheira da mansão do casal.
A vida do magnata da indústria do sexo parecia sem rumo quando ele foi processado em 1984 pelo pastor Jerry Falwell, o mais famoso “televangelista” dos EUA, líder do movimento conservador e pro-Reagan “Maioria Moral”, retratado na revista Hustler em uma sátira ultrajante. Com uma paródia de um comercial da Campari, a publicação sugeria que Falwell havia feito sexo com a própria mãe e que pregava bêbado. Furioso, o pastor pediu uma indenização por danos morais milionária contra Flynt e a revista, um valor astronômico que o levaria à falência caso o julgamento fosse procedente.
Flynt e seu advogado transformaram o caso em uma batalha em defesa da liberdade de imprensa e tiveram a adesão, como amicus curiae, de diversas entidades civis, de associações de imprensa e de grandes empresas editoras.
A tese era a de que condenações pesadas por danos morais em razão de paródias e sátiras que notoriamente não retratavam fatos verdadeiros poderiam gerar uma autocensura na imprensa, em razão de seu efeito paralisante (“chilling effect”), violando assim a Primeira Emenda.
O caso chegou à Suprema Corte em 1987 e foi cercado de tensão, devido à fama de baderneiro de Flynt em tribunais de justiça. Em 1983, o empresário da indústria do sexo havia comparecido à sala de sessões da Suprema Corte para acompanhar outro julgamento em que a Hustler estivera envolvida e proferiu então uma torrente de palavrões direcionada aos Justices, o que fez com que o então presidente da Corte, Warren Burguer, após uma série de advertências, determinasse sua detenção e retirada compulsória do plenário. Foi a primeira vez na história daquela corte constitucional que um litigante saiu preso do edifício.
Mas dessa vez a sessão acabou se transformando em uma das mais curiosas e divertidas que ocorreram naquele tribunal, no qual, de forma inédita, duas celebridades midiáticas nacionais se confrontavam. Um correspondente do Washington Post descreveu o ambiente inicial da corte como o de um “drama hollyoodiano”. O ambiente carregado logo desanuviou quando as sustentações orais começaram e os juízes passaram a fazer intervenções algo jocosas que levaram a audiência aos risos. Antonin Scalia, que havia sido nomeado há cerca de um ano, estava particularmente espirituoso, argumentando que George Washington era frequentemente comparado a um asno pela imprensa e sabia lidar com esse tipo de sátira, mas que não tinha tanta certeza se ele toleraria ouvir que transava com sua própria mãe.
Desta vez, Flynt se comportou bem e ao final da sessão declarou à imprensa que estava sendo processado por seu extremo mau gosto. E acrescentou: “Para viver em uma sociedade livre, você precisa pagar um preço e esse preço é a tolerância. Você precisa tolerar coisas de que sinceramente não gosta”.
O julgamento foi proferido no início do ano seguinte, em 1988, e o resultado foi amplamente favorável à Hustler: oito votos a zero. O colegiado entendeu que paródias de figuras públicas que não podem ser levadas razoavelmente a sério são protegidas contra responsabilidade civil pela Primeira Emenda, mesmo se ultrajantes e com intenção de causar perturbação emocional. Acolheu-se a tese de que condenações pecuniárias em casos como esse teriam um deletério efeito inibidor sobre a liberdade de imprensa.
A decisão foi redigida pelo presidente da Corte, o conservador William Rehnquist. Ele destacou que ataques ferozes a políticos e celebridades faziam parte da tradição americana, liberdade essa que poderia estar em perigo se as “vítimas” de caricaturas pudessem promover ações indenizatórias toda vez que se sentissem perturbadas. O tribunal também reconheceu a inviabilidade de se fixar critérios normativos objetivos em termos do que é ou não admissível em questões de sátira política.
Larry Flynt continuou ativo nas décadas seguintes como empresário e militante comprometido com as liberdades civis. Era um dos mais ferozes críticos do Partido Republicano na mídia, tendo oferecido uma “recompensa” de um milhão de dólares para quem descobrisse provas de corrupção contra Donald Trump. Seu desaparecimento marca o fim de uma era em que critérios subjetivos de moralidade dificultavam a livre circulação de ideias e das mais variadas formas de expressão – mesmo que de gosto duvidoso. Foi um herói tipicamente americano em sua venturosa vida de fracassos e redenções.
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A vida de Larry Flynt foi retratada no cinema pelo Diretor Milos Forman, no filme “O Povo contra Larry Flynt” (1997), com streaming disponível no You Tube.
É possível ouvir a gravação da sustentação oral na Suprema Corte do caso Hustler Magazine v. Falwell (1988) neste link (clicar em “oral argument”).
Está disponível no You Tube uma reportagem feita no calor dos acontecimentos do caso Hustler Magazine v. Falwell (1988), com entrevistas de Larry Flynt e Jerry Falwell concedidas do lado de fora do prédio da Suprema Corte, no dia da sessão de sustentação oral do caso.