Internacional
Tortura nas prisões russas: o sistema persegue as vítimas
Ex-presidiários relatam à DW como foram torturados em colônias penais da Sibéria. Seus casos são reconhecidos, mas as autoridades, além de não investigar, ameaçam as vítimas e acobertam os próprios crimes
Dezenas de vítimas e seus advogados acusam as autoridades russas de tentarem encobrir numerosos casos de tortura e rejeitarem queixas contra os agentes prisionais. Um caso na região administrativa de Irkutsk gerou forte repercussão: no início do ano, as autoridades locais anunciaram ter suspendido as investigações sobre quatro casos de tortura. A lista das prováveis vítimas, porém, é bem mais longa.
Em outubro de 2021, o ex-presidiário Serguei Savelyev enviou 40 gigabytes de material de vídeo e fotografias de prisões russas à organização pelos direitos humanos Gulagu.net. As imagens mostram como os detentos são duramente maltratados em diversas instituições.
O escândalo levou à renúncia do diretor do Serviço Penitenciário Federal da Rússia, Alexander Kalashnikov. Agentes penitenciários foram indiciados e demitidos em algumas regiões administrativas, enquanto em outras partes do país o escândalo foi basicamente ignorado.
Em Irkutsk, apesar de surgirem vários vídeos com registros de violência, o diretor da autoridade prisional da região, Leonid Sagalakov, continuou no cargo e ainda foi promovido a major-general.
Casos de torturas nas prisões de Irkutsk foram relatados em abril de 2020 após uma rebelião na Colônia Penal nº 15, na cidade de Angarsk. De acordo com informações oficiais, o tumulto foi provocado por um prisioneiro. Fontes não oficiais apontam outro motivo para a revolta: a tortura.
Violência e abusos
Graças à ajuda da fundação russa Em Defesa dos Direitos dos Presidiários, rotulada pelo governo como “agente estrangeiro”, a DW conseguiu entrar em contato com testemunhas do motim de Angarsk e da repressão aos detentos.
Temendo represálias por parte das autoridades russas, eles concordaram em falar, contanto que seus nomes fossem modificados.
Dmitri conta que ele e outros presos foram retirados de suas celas por volta da da meia-noite. “Nos puseram deitados no concreto com as mãos atrás de nossas cabeças até às 9hs. Tivemos de fazer nossas necessidades ali mesmo, porque não podíamos nos levantar”, afirma, com voz trêmula. “Nos agrediam e riam de nós”. Ele teve várias costelas quebradas e um entorse na mão.
Outros detentos relataram que, após a rebelião, em torno de 600 detentos foram redistribuídos para três outras instituições. “Éramos torturados o tempo todo”, lembra Alexei.
Em sua nova prisão, uma ala inteira fora preparada para receber os recém-chegados, onde eram aguardados por prisioneiros que colaboravam com a administração do presídio. Eles formavam verdadeiros esquadrões de tortura, com cinco ou seis homens em cada cela. Fomos jogados um a um nessas celas, onde nos amarravam e torturavam. Era horrível”.”
Confissões forçadas e difamações
Diversas fontes nos centros de detenção para onde os “revoltosos” foram transferidos confirmaram as denúncias de tortura sistemática. Os presos que colaboravam com as autoridades da prisão forçavam os recém-chegados a difamarem os outros e confessarem ter ajudado a organizar a rebelião em Angarsk.
Quando as pancadas não bastavam, enfiavam-se pregos debaixo das unhas e se davam golpes nos joelhos dos prisioneiros, com cabos e tábuas. Eles também eram violentados com diferentes objetos. Isso se prolongou por meses. Dmitri conta que um dos agentes mais graduados, Vasily L., o espancava e torturava todas as manhãs, exceto nos fins de semana.
Durante seis meses, familiares e advogados não conseguiam localizar os detentos. Por fim, em setembro de 2020, 15 presos foram formalmente acusados de organizar a rebelião.
“Inválido para sempre”
A violência se encerrou em dezembro de 2020, quando o preso Keschik Ondar teve de ser transportado para um hospital após ter sido torturado.
“No primeiro dia, quebraram a perna dele na prisão, e no segundo dia, introduziram no seu ânus uma haste de aquecimento, que explodiu. Foram ferimentos terríveis, e foram precisas duas cirurgias complexas. Ele vai ficar inválido para sempre”, afirmou a irmã de Keschik, Asiana Ondar
A irmã do presidiário Tahirschon Bakiyev deu um relato semelhante: ele teria sido golpeado com tábuas, violentado com um cabo de vassoura, jogado debaixo de um catre que foi soterrado com sacos. Assim ele teve que ficar por dois dias.
Yevgeny Yurchenko também relatou ter sido torturado e violentado. Ele relatou que em janeiro de 2021, a Autoridade Penitenciária Federal lançou uma investigação sobre violações dos direitos humanos nos presídios em Irkutsk, que foram seguidas de vários processos criminais contra funcionários das prisões onde os crimes ocorreram. Alguns deles estão detidos ou em prisão domiciliar, outros casos foram arquivados.
Vítimas voltam ao banco dos réus
O ativista dos direitos humanos Pyotr Kuryanov, da entidade Em Defesa dos Direitos dos Presidiários, está entre os que ajudam as vítimas de tortura. Seu grupo conseguiu localizar 40 supostos afingidos, do quais alguns ainda cumprem pena, mas puderam receber os advogados.
Muitos ainda temem por sua segurança. Um deles, por exemplo, não está mais cadastrado como vítima pelas autoridades, sem que lhe dessem qualquer justificativa.
As vítimas que já foram libertadas também têm motivos para se preocupar. Yevgeny Yurchenko foi preso novamente em dezembro de 2021, acusado de traficar drogas na prisão. Ele alega que a detenção foi forjada, e que as autoridades querem se vingar por suas declarações.
Denis Pokusayev, uma conhecida vítima de tortura, também relatou ter sido pressionado pelas autoridades após sua soltura. Dois investigadores tentaram forçar a entrada em seu apartamento, o intimaram a uma conversa e mostraram algemas através da vigia da porta.
“Eles passam de vez em quando, batem à porta, os tratam como culpados e ameaçam. A pessoa então fica com medo e assina os documentos de que as autoridades precisam”, explica o ativista dos direitos humanos Kuryanov.
O ex-agente penitenciário Vasili L., que torturava prisioneiros todas as manhãs, é o único condenado por violência até o momento e está em prisão preventiva. Em outros casos, os funcionários foram simplesmente acusados de negligência no trato dos presidiários. Um resultado nada animador para as vítimas.