Internacional
Apesar de sanções, Alemanha fez pesquisa com Coreia do Norte
Para impedir a proliferação de armas nucleares na Coreia do Norte, a ONU vetou a cooperação científica de seus Estados-membros com o país. Um instituto de tecnologia em Berlim manteve uma parceria mesmo assim
Em 2022, uma sequência sem precedentes de testes de mísseis balísticos foi disparada pela Coreia do Norte, alimentando temores de que haja preparativos para um sétimo teste nuclear do país. O ditador Kim Jong-un demonstra querer mais armas de destruição em massa (ADMs), e suas capacidades militares estão avançando rapidamente.
Tais desenvolvimentos não seriam possíveis sem o avanço da ciência e da tecnologia, razão pela qual o Conselho de Segurança da ONU sancionou o intercâmbio acadêmico e a transferência de tecnologia com a Coreia do Norte.
Em novembro de 2016, após o quinto teste nuclear do regime comunista, o Conselho de Segurança da ONU editou uma resolução para que todos os Estados-membros interrompessem qualquer cooperação científica com o país asiático – exceto em casos raros com permissão especial.
“Essas sanções foram introduzidas no regime da ONU com base no entendimento de que [a Coreia do Norte] poderia adquirir conhecimento e informações relacionadas a armas de destruição em massa por meio da realização de pesquisa de base ou aplicada em campos da pesquisa civil”, disse à DW Katsuhisa Furukawa, especialista japonês em desarmamento. De 2011 a 2016, ele serviu no Painel de Especialistas da ONU para a Coreia do Norte, cuja tarefa é justamente monitorar as sanções.
Pesquisa conjunta com a Universidade Kim Il Sung
Mas essa mensagem parece ter passado despercebida no Instituto Max Born, instituição sediada em Berlim e especializada em pesquisa civil com laser. O MBI, como também é conhecido, manteve a cooperação, principalmente com um grupo de pesquisadores da Universidade Kim Il-sung, em Pyongyang.
Essa é a principal universidade de elite da Coreia do Norte. Sua pesquisa é crucial para os programas de armas nucleares e balísticas do país. E, segundo Furukawa, tem sido investigada por “múltiplas violações de sanções”.
Sem parecer se importar, o MBI manteve a pesquisa conjunta, não apenas após o endurecimento das sanções em 2016, mas também após o sexto e até agora último teste nuclear norte-coreano, em 2017.
“Violações das sanções da ONU pela Alemanha”
De fato, um pesquisador do MBI, Joachim Herrmann, publicou nove artigos conjuntos com cientistas norte-coreanos de 2017 a 2020. Furukawa sugere que essa cooperação “provavelmente constitui violações por parte da Alemanha das medidas de sanção da ONU”.
Todos os nove artigos tratam de pesquisa de base sobre tecnologia laser, nas quais as aplicações no mundo real não são imediatamente evidentes. Mas num ponto os especialistas militares concordam: lasers fazem parte de como serão travadas as guerras no futuro.
Joachim Herrmann trabalhou com um físico norte-coreano em particular, Im Song-jin, que já havia passado quase dois anos no MBI como bolsista convidado. Os dois tinham afinidade e, depois que Im voltou a Pyongyang em 2010, eles mantiveram contato por e-mail e continuaram trabalhando remotamente.
Ameaça é “perigosamente real”
A DW discutiu separadamente com dez especialistas independentes — seis físicos e quatro especialistas em não-proliferação de armas — o conteúdo do mais recente artigo conjunto dos dois cientistas. Os seis físicos ficaram divididos: metade não viu perigo, mas a outra metade não descartou um potencial uso militar no futuro.
Todos os quatro especialistas em não-proliferação ficaram alarmados diante dos riscos de uso duplo, quando a pesquisa pode ter aplicações civis e militares.
“A possível aplicabilidade militar da pesquisa avançada é notoriamente difícil de comprovar e extremamente simples de negar ou ocultar — mas a ameaça de tal transferência de conhecimento é perigosamente real”, disse à DW uma fonte da ONU que pediu anonimato.
De quem é a culpa?
Joachim Herrmann não quis dar entrevista. Em uma declaração por escrito à DW, a direção do MBI limitou-se a dizer que o instituto “não realiza nenhuma pesquisa militar, e sim pesquisa básica com lasers exclusivamente civil”. O MBI também disse que desconhecia as sanções mais rígidas da ONU: “Em nenhum momento, por exemplo, recebemos um pedido do Ministério da Educação e Pesquisa [da Alemanha] para suspender os contatos científicos com a Coreia do Norte.”
Então a culpa seria dos políticos alemães?
Para esclarecer esse ponto, a DW conversou com Kai Gehring, do Partido Verde, que dirige o Comitê Parlamentar de Educação e Pesquisa.
“Há obrigações de ambos os lados”, disse ele. “E para aqueles da comunidade científica que não perceberam que existe um regime abrangente de sanções contra a Coreia do Norte, eu teria algumas perguntas sobre como isso pode acontecer.”
Autoridades de exportação não foram consultadas
A liberdade científica é protegida pela Constituição da Alemanha. Enquanto o governo se abstém de traçar limites claros, a responsabilidade pela avaliação dos riscos é dos cientistas. Caso estejam em dúvida sobre um eventual uso duplo, eles devem entrar em contato com as autoridades de controle de exportação para análise.
Isso não foi feito pelo MBI. Obviamente, o pesquisador não viu perigo, e seus superiores souberam muito tarde da cooperação. Portanto, nenhuma análise foi feita e as sanções passaram despercebidas.
O último artigo conjunto do MBI com pesquisadores norte-coreanos foi publicado em 2020, porque depois o MBI acabou interrompendo a cooperação.
Questionado sobre o motivo, o instituto disse à DW: “A razão para isso foi a crescente preocupação da diretoria sobre o papel da Coreia do Norte na política internacional. O MBI não coopera com representantes do regime na Coreia do Norte e gostaria de evitar até mesmo a aparência de cooperação.”
Deve haver limites para a cooperação científica?
As sanções da ONU só podem funcionar se os Estados-membros as transformarem em lei, as divulgarem e as aplicarem. Neste caso, a União Europeia emitiu um regulamento correspondente que vincula a Alemanha à sua aplicação.
Apesar disso, ninguém no país questionou a cooperação do MBI. O autocontrole científico falhou. A comunicação de todas as partes envolvidas foi insuficiente, embora o MBI, como instituição, conte com financiamento estatal.
Se tais falhas são possíveis em um período de quase quatro anos, mesmo em um caso flagrante como a Coreia do Norte, é razoável supor que todo o sistema seja falho. O ex-funcionário da ONU Furukawa sugere “uma colaboração muito mais estreita entre a comunidade científica e as autoridades de segurança nacional”.
Os legisladores alemães ainda relutam em traçar limites claros, embora isso se resuma a uma questão crucial: que aplicações poderá ter a pesquisa da Alemanha se Estados autocráticos como Coreia do Norte, China ou Rússia podem explorá-la?
Por causa da guerra de agressão contra a Ucrânia, toda a cooperação de pesquisa da Alemanha com a Rússia foi suspensa. A cooperação científica com a China é objeto de acalorado debate. Na ciência, a Alemanha ainda não encontrou seu equilíbrio entre os valores liberais e os interesses de segurança do Estado.