Segurança Pública
Relatório contradiz dados do governo e mostra que roubo de cargas cresceu 4,8% em 2023
Um relatório anual do setor privado mostra que o roubo de cargas cresceu 4,8% em 2023, na comparação com 2022. O dado contradiz os números divulgados em 31 de janeiro pelo então ministro da Justiça, Flávio Dino, durante balanço de sua gestão segundo os quais, esse tipo de crime apresentou redução de 11% no ano passado, também na comparação com 2022. Isso mostra que o roubo de cargas, que quase causou a paralisação do setor no Rio de Janeiro em 2017 e gerou grandes prejuízos por todo o país, volta a ganhar destaque entre as modalidades criminosas.
Os novos dados são fruto de um estudo da multinacional de gestão de riscos Overhaul, especializada em cadeias de suprimentos. Ele mostra que em 2023 ocorreram 17.108 eventos de roubo de carga em todo o país. Em 2022, o número de casos constatados foi de 16.324. O resultado é uma alta de 4,8%. Dino havia apresentado um total de 11.652 casos em 2023 e 13.101 em 2022, sugerindo redução de 11%.
O número anunciado pelo governo representa uma defasagem de 46% em relação aos registros do setor privado. Segundo Reginaldo Catarino, gerente de Inteligência da Overhaul Brasil, a diferença se deve à subnotificações de roubos pelas secretarias de segurança estaduais e outros órgãos afins. Ele explica que o Brasil não tem uma coleta unificada de dados, cada Estado tem autonomia para definir os parâmetros de peso, volume ou valor para que um caso seja tipificado como roubo de cargas.
“Cada unidade da federação define seu conceito e, dessa forma, define o roubo de carga que vai ser registrado ou não. Por exemplo, no Rio de Janeiro e no Mato Grosso volumes pequenos de entregas em motos e e-commerce entram como roubo e não como roubo de carga”, explica. Outros Estados registram até os casos envolvendo pouco volume como roubo de carga.
Catarino ainda afirma que há uma preocupação de delegados e agentes da segurança pública para que haja uma unificação deste tipo de crime no país, o que possibilitaria uma avaliação mais precisa do cenário nacional.
Para obter uma análise mais ampla, a empresa não se restringe aos números fornecidos pelo governo e pelas secretarias de segurança estaduais ou delegacias. Para tanto, os dados são coletados por meio de inteligência artificial que se utiliza de palavras-chaves para vasculhar a internet e as redes sociais a fim de encontrar os casos de roubos de carga no Brasil. Os casos então são checados e considerados ou não na contagem total.
O Ministério da Justiça informou que os dados publicados em sua página são enviados, consolidados e homologados pelos Estados e pelo Distrito Federal e que a forma de preenchimento de indicadores está regulamentada pela resolução Consinesp/MJSP No 6 de, 8 de novembro de 2021. Apesar de incluir os casos de roubo de carga nos dados de Segurança Pública que os Estados devem prestar ao órgão, a resolução não estabelece quais são os parâmetros para classificação do que seja um roubo de carga, conforme afirma Catarino.
O governo vê na alegada redução de determinadas estatísticas criminais o resultado de suas políticas de combate ao crime e investe em eventos e material de divulgação para divulgar essas conclusões. Isso porque a violência tem sido um dos maiores pontos fracos da administração de Luiz Inácio Lula da Silva. No caso dos homicídios, houve, por exemplo, a deturpação de um gráfico oficial para dar a entender que o atual governo seria responsável por uma queda acentuada no número de mortes no país.
Roubos de cargas não devem cair em 2024, diz consultoria
A previsão da Overhaul é o número de roubos de cargas em 2024 se mantenha estável. A consultoria estima que os casos fiquem no patamar de 17.300, o que representaria um aumento aproximado de 1%.
Ricardo Fernandes, sócio-fundador da ARP Analytics, consultoria em gestão de riscos, afirma que o crescimento e os altos índices de roubo de carga no Brasil estão ligados à impunidade. Ele explica que poucas investigações são levadas adiante e que, portanto, poucos criminosos são punidos por essa prática. Além disso, seria necessária uma legislação mais rigorosa, por exemplo, para punir interceptadores e distribuidores das cargas roubadas.
O consultor destaca que, assim como no tráfico e no contrabando, os criminosos que atuam no roubo de cargas são muito pragmáticos, agem de forma direta e incisiva e conseguem atingir seus resultados. Deste modo, a impunidade e a falta de freios morais acabam por auxiliar a tendência de crescimento das estatísticas. A avaliação de Fernandes vai no mesmo sentido das conclusões do relatório da Overhaul, que apontam que os transportes de cargas no Brasil estão sob grave risco de roubo, principalmente as mistas, alimentos e bebidas, cigarros, eletrônicos, autopeças e agrícolas.
O aumento dos roubos de cargas no país é um fator de preocupação pois fortalece outras ações criminosas e gera impacto nos preços dos produtos. Isso porque as maiores facções criminosas, como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, que inicialmente baseavam sua fonte de renda apenas no tráfico de drogas, passaram a diversificar atividades ilegais. O roubo de cargas se tornou particularmente lucrativo pois não há sistema de rastreio de cargas roubadas e até grandes redes varejistas passaram a comprar produtos roubados.
Por outro lado, o aumento da criminalidade também contribui para aumentar o preço dos produtos legalizados, pois o preço dos seguros de transporte se elevam e são repassados ao consumidor final. Em 2017, no Rio de Janeiro houve até risco de desabastecimento da capital pois corretoras passaram a não fazer seguros ou cobrar preços exorbitantes e quase inviabilizaram o transporte de cargas por meses.
Região Sudeste é campeã em roubo de cargas
Segundo o relatório da Overhaul, em 2023 a Região Sudeste ficou na primeira colocação em roubos de carga, com 76% dos eventos. São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados onde a prática é mais crítica, com 70% dos eventos nacionais. A atuação de gangues que buscam cargas de maior valor, como produtos eletrônicos e cigarros, para distribuição em mercados legais e ilegais tem crescido na região.
Um exemplo foi o roubo de um caminhão carregado de cigarros em Cubatão (SP), em 23 de janeiro. Na ocasião, ação conjunta das polícias Militar e Civil de São Paulo resultou na morte de três criminosos, que reagiram à ação policial, e na detenção de 17 suspeitos, sendo dois menores de idade. O motorista havia sido feito refém pela quadrilha, mas foi libertado. O valor total da carga era de R$ 7,2 milhões.
O episódio revela duas tendências também destacadas pelo relatório: o aumento desse tipo de crime na Baixada Santista e o crescimento do roubo de cargas de tabaco. Segundo o documento, os municípios de Praia Grande, São Vicente, Guarujá e Cubatão praticamente quadruplicaram os números de roubos de carga entre 2022 e 2023.
Elevação de custos e de preços
Como mais de 60% do transporte de cargas no Brasil é feita pelo sistema rodoviário, os impactos dos roubos de carga são bastante amplos, podendo causar desde a elevação de preços, até mesmo a escassez de determinados produtos e o não fornecimento e demora na entrega.
Charles Ferreira, diretor executivo da JC Gestão de Riscos, que presta serviços para garantir a segurança patrimonial e nos transportes de empresas, explica que o valor do seguro contra roubo aumenta de acordo com a avaliação de risco de uma região. Se aumentam os roubos, o valor do seguro tende a aumentar e, dependendo dos casos, pode ser preciso utilizar caminhões blindados, escoltas e rastreamento, por exemplo.
Ele explica que, por exemplo, no Rio de Janeiro a somatória destes custos de segurança pode chegar a 15% do valor da carga. Para se ter uma ideia da gravidade desse dado, durante a guerra do Iraque os custos de segurança calculados pelas empresas americanas que faziam a logística de suprimentos do exército na região giravam em torno de 20 a 25%.
Tamanha insegurança fez com que, por exemplo, algumas empresas deixassem de fazer seguros para transporte ou entrega de cargas no Rio. Em alguns casos, além de cobrar valores altíssimos, os seguros previam a partilha das perdas, ficando 50% por conta da seguradora e 50% por conta do segurado. Além disso, ele destaca que empresas já deixaram de abrir centros logísticos na capital fluminense em razão do alto risco. “As pessoas não têm ideia do valor a mais que pagam em razão das medidas de segurança que as empresas precisam adotar”, afirma.
Produtos roubados variam de acordo com a região
O relatório ainda mostra que as cargas roubadas variam segundo os produção local. No Sul, que ocupa o 2º lugar no ranking com 10% dos roubos ocorridos no país, o principal alvo dos criminosos são as cargas agropecuárias. Elas representaram 19% do total de ocorrências em 2023. Esse padrão se mantém no Centro-Oeste, onde 38% das cargas roubadas são do agronegócio.
Já no Sudeste, as cargas mistas são as mais visadas e na região Nordeste, que concentra 8% do total de roubos de carga no país, eletrônicos e alimentos e bebidas são os principais alvos. No Norte destaca-se o roubo de produtos eletrônicos, com 31% das ocorrências na região.
Sequestros planejados e roubos de oportunidade
A carga também pode determinar o tipo de roubo que é realizado. No caso de tabaco, por exemplo, cujo contrabando se tornou uma alta fonte de renda para facções criminosas, e de alguns produtos do agronegócio, as quadrilhas usam uma tática específica.
Nesses casos, o caminhão é abordado, levado para um local onde é feito o descarregamento e a redistribuição da carga para outros veículos. Em geral, o local da “desova” fica em um raio de até 80 km da abordagem, para diminuir o risco de interceptação policial.
Há também os roubos de oportunidade, nos quais os criminosos abordam os caminhões sem saberem qual é a carga. Em geral, esses são feitos no perímetro metropolitano e os caminhões são levados para regiões controladas pelo tráfico ou para galpões, onde podem ser rapidamente descarregados, em menos de 15 minutos.
Charles ressalta que, no caso do roubo de alimentos e bebidas, os riscos para a saúde da população podem ser muito altos, pois os produtos demandam cuidados de conservação que não são cumpridos nem por quem intermedia e distribui a carga roubada e, muitas vezes, nem por quem a revende. Se houver alguma questão de saúde pública relacionada à deterioração desses produtos, a empresa fabricante ainda pode ter que responder pelos danos causados.
Carga também vai parar nas mãos do crime por meio de fraudes e furtos
Além das modalidades anteriores, também há registros de fraudes e furtos. No primeiro caso, Catarino explica que não há uma ação direta dos criminosos, mas a manipulação de documentos ou uma ação para retirar um caminhão carregado de dentro de um armazém, por exemplo.
Em alguns casos, o próprio motorista ou uma pessoa que se faz passar por motorista podem sair com a carga e, no meio do percurso, entregá-la para algum interceptador. Depois, fazem o boletim de ocorrência dizendo que a carga foi roubada. “Infelizmente essa é uma prática que tem ocorrido no Brasil”, destaca.
Já o furto se distingue das outras modalidades por não envolver o uso de violência ou a criação de narrativas fictícias. Ocorre quando o veículo está parado em um local de estacionamento, por exemplo, e alguém corta a lona ou abre a porta da carroceria e subtrai uma parte dos produtos, sem haver o sequestro do veículo ou do seu condutor.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública foi procurado para esclarecer e comentar a diferença entre os números que divulgou e os do relatório da Overhaul, mas, até o fechamento desta reportagem, não havia se pronunciado.