Internacional
Feministas ajudam homens a escaparem do recrutamento russo
Desde o anúncio de Moscou da mobilização parcial para reforçar as tropas na Ucrânia, um grupo feminista russo tem ajudado centenas de homens a fugirem do país. Sua força foi subestimada pelo Kremlin e até pela oposição
Nos dias que sucederam o anúncio de Moscou de uma mobilização militar, em 21 de setembro, Liliya Vezhevatova mal conseguia dormir. Vários amigos e conhecidos a abordavam para que ajudasse objetores a deixarem a Rússia. Vezhevatova vive na capital armênia Ierevan e é coordenadora do grupo Resistência Feminista Antiguerra (FAS, na sigla em russo).
O presidente russo, Vladimir Putin, comunicou recentemente que mais de 222 mil já foram alistados como parte da “mobilização parcial”, como a convocação militar é chamada oficialmente na Rússia. Mas ela também provocou um grande êxodo.
De acordo com o jornal independente russo Novaya Gazeta Europe, desde que a mobilização foi anunciada, mais de 260 mil homens deixaram o país para evitar o recrutamento. E, de repente, o grupo feminista FAS se viu confrontado com novas tarefas.
“Fornecemos conselhos, compramos passagens, organizamos ônibus e viabilizamos acomodação”, contou Vezhevatova à DW. “A maioria dos homens partiu entre 21 e 26 de setembro.” Segundo ela, várias centenas de ativistas da FAS na Rússia e no exterior estiveram envolvidos no trabalho. Ela calcula que ajudou diretamente 60 homens a escaparem da Rússia.
Prioridade a indivíduos sob alto risco
A ativista da FAS Lolja Nordic teve uma experiência semelhante. Ela afirma que a maioria dos que queriam deixar o país conseguiu, porém outros estariam se preparando para fazer o mesmo.
“Fui contactada por dezenas de homens que queriam escapar do recrutamento para o Exército russo ou ajudar parentes. Eu os informei sobre seus direitos humanos e os coloquei em contato com ativistas que poderiam organizar uma viagem. Comprei passagens de avião, organizai caronas ou moradia temporária.”
Vezhevatova explica que os primeiros que precisavam ser retirados da Rússia eram os transgêneros ou quem fora preso durante protestos, pois eram os mais ameaçados pelo Kremlin. “Havia o perigo de que as forças de segurança viessem buscá-los em suas casas com mandados de convocação militar.”
Ela relata que os ajudantes buscaram os homens sob alto risco na fronteira russo-georgiana e os colocaram em apartamentos alugados de ativistas. “Alguns brincavam que agora não tinham onde dormir”, conta Vezhevatova. Em sua opinião, as mulheres agora formam a base da sociedade civil russa por ser rápidas em unir forças e fornecer ajuda efetiva.
Ajuda jurídica, psicológica e material
O grupo FAS é a instituição mais relevante emergida do movimento feminista russo, de acordo com Natalia Kovyliaeva. A cientista política da Universidade de Tartu, na Estônia, estipulou que no início deste ano havia cerca de 57 grupos feministas em cerca de 30 regiões da Rússia. Vários deles grupos se uniram para formar a FAS em 25 de fevereiro, um dia após o início da invasão russa da Ucrânia. Atualmente, segundo Kovyliaeva, o movimento está ativo em 100 cidades da Rússia e do exterior.
No aplicativo de mensagens Telegram, o grupo FAS conta atualmente com mais de 40 mil seguidores. Seus membros organizam protestos contra a guerra, vestem roupas pretas nas ruas, espalham memes antiguerra nas redes sociais, escrevem “não à guerra” em cédulas de dinheiro e publicam um jornal chamado Zhenskaya Pravda (Verdade das Mulheres).
“Zhenskaya Pravda é um jornal independente antiguerra que não tem vergonha de ser impresso e mostrado para nossas mães e avós”, diz a apresentação no Twitter, onde o jornal pode ser baixado.
As ativistas do FAS também realizam ações como a “Mariupol 5.000”, em alusão à estimativa de 5 mil mortos na cidade portuária no sudeste das Ucrânia. As ativistas colocaram centenas de lápides nos pátios de casas na Rússia para homenagear as vítimas de Mariupol.
“As feministas têm prestado assistência jurídica, psicológica e material a fugitivos, ajudando-os a se mudarem e cuidando dos ativistas que estão fisicamente esgotados”, relata Kovyliaeva.
Força política feminista a ser considerada
O movimento possui uma estrutura organizacional horizontal, e as ativistas podem formar sua própria federação em qualquer cidade. “Isso torna o FAS mais adaptável e permite novas táticas e estratégias”, explica Kovyliaeva. “A Hidra tem várias cabeças. Se cortar uma, nascem dez novas.”
Ela acha que a FAS também se destaca de outras iniciativas por suas formas criativas de protesto. “As feministas abordam o público num formato que ele pode entender, e abordam a guerra e suas consequências numa linguagem que grande parte da população entende.”
No entanto, a atitude em relação às feministas na Rússia sempre foi bastante negativa, admite a pesquisadora. Poucos percebem o que elas realmente defendem. “É difícil dizer até que ponto as atitudes mudaram, mas as feministas encontraram um terreno comum com grandes setores da população”, afirmou Kovyliaeva.
Em sua opinião, a FAS tornou-se uma força política tangível que se opõe à guerra, ao patriarcado, ao autoritarismo e ao militarismo. “Enquanto o regime de Putin esmagou outras forças da oposição, ninguém levou as feministas a sério, incluindo os políticos da oposição”, analisa a pesquisadora. Dessa forma, as feministas conseguira construir gradualmente uma rede.
Foco no trabalho de informação
Agora, no entanto, muitas ativistas feministas deixaram a Rússia porque já haviam cumprido penas de prisão após os protestos contra a guerra em fevereiro e queriam escapar da ameaça de novos encarceramentos, conta Vezhevatova.
A própria coordenadora da FAS foi presa duas vezes antes de se mudar para Ierevan em março. Mas o exílio permitiu que as ativistas continuassem seu trabalho com mais segurança. E uma vez que o número de notificações de convocação militar decaíram, elas passaram a se concentrar em informar os russos. Elas os exortam a não aceitarem as notificações e ficarem longe dos escritórios de recrutamento.
Mas a situação é difícil: “Os papéis sociais do gênero masculino estão profundamente arraigados, e algumas mães chegam a dizer a seus filhos que são covardes e desertores se não forem para a guerra”, registra Liliya Vezhevatova.
Ela garante que, embora muitos homens e mulheres tenham uma visão negativa das feministas na sociedade, os insultos e as barreiras enfrentadas no passado não estão em questão no momento.
“Quando as pessoas estão passando necessidade e fugindo da morte, não é certo lembrá-las de seu comportamento passado. Por trás de cada um dos homens que tiramos da Rússia estão mulheres – mães, esposas e irmãs – e crianças também.”