Internacional
Maior polo europeu do narcotráfico teme aumento da violência
Com seu porto, Antuérpia é capital europeia da cocaína, contrabandeada sobretudo da América Latina. A violência tem se mantido baixa, mas poderá se agravar após sucesso da repressão ao narcotráfico na vizinha Holanda
Teun Voeten toca levemente um dos vários furos redondos numa porta de garagem de uma rua pacata, na zona nordeste de Antuérpia. “Para mim, parece uma kalashnikov”, comenta o antropólogo cultural, especulando que tipo de arma teria matado uma menina de 11 anos dentro da própria casa, no início de janeiro.
Embora se creia que essa morte foi apenas o resultado de um sinal de advertência por uma gangue de narcotráfico, que deu errado, Voeten, que pesquisa a cena das drogas na cidade portuária da Bélgica, diz haver o risco de o possível acidente desencadear “um ciclo de vingança, um nível de violência nunca visto, de dinâmica imprevisível”.
O homicídio aconteceu no dia mesmo em que as autoridades belgas anunciaram que em 2022 haviam sido apreendidas 110 toneladas de cocaína em Antuérpia, segundo maior porto da Europa. Isso é mais do que o dobro de Roterdã, Holanda, onde se apreenderam 52,5 toneladas – uma queda em relação às 77 toneladas de 2021. Mas, apesar de constituir um recorde, calcula-se que 110 toneladas não sejam mais de 10% do total que entra pelo porto belga.
Juntamente com a Europol, o Centro Europeu de Monitoração de Drogas e Narcodependência estimou que em 2020 o mercado varejista da cocaína na Europa movimentou pelo menos 12,8 bilhões de euros (R$ 71 bilhões) – cifra reconhecidamente abaixo da real, já que, desde então, as capturas cresceram dramaticamente.
Repressão de chefões holandeses repercute na Bélgica
Até o momento, frisa Voeten, apesar da “incrível quantidade” de cocaína que a inunda, Antuérpia nunca vivenciou a brutalidade de gangues vista em Roterdã ou Amsterdã – onde em 2016, por exemplo, encontrou-se uma cabeça decepada diante de um café. Porém o recente êxito das autoridades em prender protagonistas poderosos na Holanda significa que mais atividades nocivas serão transferidas para a cidade belga.
“Basicamente eram os holandeses que davam as cartas, usando belgas para o trabalho sujo, de retirar a cocaína dos contêineres. Mas os belgas tomaram a frente desde que vários figurões da Holanda foram presos. As estruturais organizacionais todas foram um tanto abaladas. Então vai haver muito mais ações duras das autoridades – e conto que vai haver mais violência.”
O prefeito de Antuérpia, Bart de Wever, solicitou mobilização do Exército nacional para o porto. Embora a ideia não tenha recebido grande apoio político, o governo anunciou que pelo menos mais 100 policiais serão destacados para lá, assim como equipamento extra de rastreamento para ampliar as inspeções das carga nas docas, além do 1% atualmente possível.
Cresce pressão das gangues sobre pessoal portuário
Embora saudando esse apoio adicional, o pessoal do porto também já antecipa seus efeitos sobre o comportamento dos traficantes. E – segundo Stephan Vanfraechem, diretor-gerente da Alfaport Voka, que representa cerca de 300 companhias envolvidas no funcionamento do porto, a situação já é bem ruim como está.
Ele explica que, nos anos anteriores, os trabalhadores das docas eram o principal alvo de recrutamento pelas quadrilhas. Mas, à medida que cresce a vigilância, também aumenta a pressão sobre uma gama mais ampla de funcionários.
Acenando em direção à área na frente do porto, Vanfraechem diz haver cafés bem específicos onde membros das gangues assediam os trabalhadores para obter dados sobre o pessoal em atividade. Assim, os contrabandistas “estão ficando cada vez mais agressivos: eles precisam de informação e de homens que os ajudem fisicamente”.
Os cartéis têm também procurado atrair funcionários administrativos que tenham acesso a logística e outros dados técnicos, além de recrutar estudantes com potencial de de serem direcionados para carreiras acadêmicas capazes beneficiar o ramo do tráfico.
“O que eles fazem agora é abordar você bem diretamente, mostrando fotos da sua família, seus filhos, de amigos. Não é uma forma muito sutil de operar, é uma ameaça bem real”, analisa o diretor da Alfaport Voka. Embora reconhecendo que, ao denunciar as gangues assim, publicamente, também se expõe às ameaças, ele está convencido de que se trata de um risco necessário.
“Eu me dou conta de que há um perigo, talvez também para mim e a minha família, minha mulher e filhos. Acho que não há alternativa além de ser aberto quanto a esse problema. Se ficamos calados, considero que estamos cooperando com esses caras. Acho que precisamos fazer que eles parem.”
Parar os criminosos não é algo que a Europa possa fazer sozinha. Por isso a Europol, a agência policial da União Europeia, está colaborando cada vez mais com os países onde a droga se origina, e aqueles fora da jurisdição do bloco onde parte dos chefões se estabeleceu, a fim de escapar da extradição.
Segundo Jan Op Gen Oorth, chefe de Comunicações Corporativas da Europol, os criminosos são tão bem conectados que “já vimos mensagens em que alguém na Europa contrata um assassinato na América Latina, esperando que seja executado no prazo de uma hora”.
Polícias da UE também expandem seus recursos
Os agentes da lei também estão expandindo suas próprias conexões, uma vez que, como lembra Op Gen Oorth, “é preciso uma rede para desmantelar uma rede”. “Mas a coalizão global de aplicação da lei também ser estrategicamente inteligente, porque não basta trancafiar os soldados pequenos, do baixo escalão, os que vão tirar a cocaína dos contêineres. É preciso a gente ir atrás do que chamamos de ‘alvos de alto relevo’.”
A cooperação vai desde a utilização altamente sofisticada de uma plataforma falsa de comunicação criptografada, que permitiu prender 800 traficantes em 2021; passando por um maior número de acordos com locais como Dubai, onde foram efetuadas prisões essenciais; até simplesmente aperfeiçoar a vigilância nas docas de carregamento na América Latina, de onde parte o grosso da cocaína.
À medida que um número crescente de países adere ao esforço concertado, Op Gen Oorth se diz “confiante de que conseguiremos prender os chefões da droga – mas vai levar tempo”.
Nesse ínterím, contudo, a Bélgica tem um outro problema: as autoridades nacionais estão apreensivas de que os gigantescos montes de cocaína apreendida, esperando para ser incinerada, sejam vistos pelos traficantes como uma sedutora oportunidade de lucro.