Judiciário
É possível reconhecer firma em documento assinado por pessoa já falecida?
Cartorários devem agir com cautela ao lidar com pessoas idosas e falecidas, seguindo as normas para evitar fraudes e garantir a segurança dos atos jurídicos
Cartorários devem agir com cautela ao lidar com pessoas idosas e falecidas, seguindo as normas para evitar fraudes e garantir a segurança dos atos jurídicos
Recentemente, um caso no Rio de Janeiro provocou diversas reações e, principalmente, espanto. O incidente envolveu a suposta tentativa de um idoso já falecido realizar um saque ou empréstimo em uma agência bancária, acompanhado por alguém que seria sua sobrinha. Esse episódio ocorreu na frente de várias pessoas.
Se você, que está lendo, trabalha ou já trabalhou em cartório, sabe que atos notariais e registrais envolvendo pessoas idosas são comuns nas serventias extrajudiciais.
A cautela na realização de atos notariais e registrais é fundamental para todas as pessoas. Nos últimos anos, observamos a implementação de normas que visam garantir medidas preventivas contra atos de violência patrimonial ou financeira contra idosos, como a Recomendação CNJ 47/2021, que por sua vez reforça a Recomendação CNJ 46/2020.
No Rio de Janeiro, as regras que reforçam as precauções nos atos notariais envolvendo pessoas com mais de 80 anos estão especificadas no artigo 317, caput, e seu parágrafo 1º do Novo Código Notarial, que estabelecem:
“Art. 317. Sendo o estipulante, interveniente, contratante ou contratado, outorgante ou o outorgado ou de alguma outra forma terceiro interessado pessoa física e idosa maior de 80 (oitenta) anos, deverá a realização do ato ser gravada em vídeo, com o registro em imagem da presença de, no mínimo, 2 (dois) integrantes da serventia ou, à critério do tabelião, precedida de videoconferência, com a presença obrigatória do tabelião ou seu substituto legal (art. 20, § 5º, da Lei nº 8.935/1994), realizada com antecedência máxima de 5 (cinco) dias da data que constar da lavratura do ato, a ser arquivada eletronicamente e mencionada no ato, sempre que envolver:
I – disposição de herança;
II – movimentação de contas bancárias;
III – procuração, inclusive para fins previdenciários;
IV – alienação ou oneração de bens ou direitos imobiliários, aeronaves e embarcações;
V – administração de bens ou direitos por terceiros; e
VI – reconhecimento, constituição ou dissolução de união estável ou qualquer outro ato que possa vir a gerar expectativa futura a terceiro de seu reconhecimento ou dissolução.
§ 1º. No caso de utilização de procurações lavradas em outros estados da federação por pessoa que, ao tempo de sua formalização, já fosse MAIOR DE 80 (OITENTA) ANOS, quando da lavratura do ato principal a que se destina, os poderes contemplados na procuração devem ser confirmados por seu outorgante por meio de gravação de vídeo ou videoconferência”.
É muito provável que, se o cidadão mencionado no caso (que, segundo informações da internet, tinha 68 anos na época do ocorrido) fosse a um cartório no Estado do Rio de Janeiro, ele poderia lavrar uma procuração ou até mesmo uma escritura sem as precauções mencionadas anteriormente, desde que estivesse consciente e vivo, claro! Isso se deve ao fato de que as regras específicas se aplicam a pessoas com mais de 80 anos. No entanto, essa regra não anula as disposições muito bem estabelecidas pelo Estatuto da Pessoa Idosa (Lei Federal 10.741/2003) nem os atos normativos do CNJ. Vale lembrar que, por lei, é considerada pessoa idosa aquela com idade igual ou superior a 60 anos.
A verdade é que todo cartorário, como eu fui por muitos anos, deve ter em mente que sua atividade não deve prejudicar as pessoas. Por essa razão, deve agir com a cautela esperada de um agente que deve seguir rigorosamente os ditames de sua lei de regência, buscando garantir com sua atuação a ‘publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos‘ (art. 1º da Lei de Notários e Registradores).
É sempre necessário lembrar que, quando o tabelião ou seu preposto lavra um ato notarial envolvendo uma pessoa idosa sem discernimento de seus atos, estará cometendo um crime, conforme estipulado pelo art. 108. do Estatuto da Pessoa Idosa:
“Art. 108. Lavrar ato notarial que envolva pessoa idosa sem discernimento de seus atos, sem a devida representação legal:
Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos”.
O caso ilustrado também envolve um fenômeno que aqueles que trabalham ou já trabalharam em cartórios certamente conhecem: atos realizados em nome de pessoas falecidas. É sabido que pessoas falecidas não podem praticar atos, muito menos atos notariais e registrais. No entanto, ainda existe o risco de que, claramente por meio de fraude, ocorra a transferência de bens de pessoas falecidas, envolvendo atos com reconhecimento de firma, procurações ou mesmo escrituras, o que constitui uma fraude evidente. Hoje em dia, com a interligação de sistemas e rotinas informatizadas, essas práticas tendem a se tornar cada vez mais raras. No entanto, como veremos adiante, ainda podem ocorrer.
Por exemplo, atualmente, quando da lavratura de uma procuração ou mesmo da expedição de uma certidão de procuração, os cartórios do Rio de Janeiro realizam uma consulta na base de dados de óbitos mantida pela Corregedoria-Geral de Justiça (CGJ) a fim de registrar expressamente no documento preparado a existência de informações sobre o óbito. A esse respeito, o artigo 343 do Novo Código Notarial estipula:
“Art. 343. No que diz respeito à sobrevida do outorgante, a eficácia das procurações e substabelecimentos será aferida por consulta às informações sobre registros de óbito em nome ou CPF dos outorgantes junto a plataforma própria mantida pela Corregedoria Geral da Justiça”.
A consulta mencionada não é realizada por ocasião do reconhecimento de firma (o que, a meu ver, poderia ser implementado, já que a consulta é gratuita e a base de dados pode ser acessada por qualquer pessoa através do link da Corregedoria Geral de Justiça disponível em https://www4.tjrj.jus.br/Portal-Extrajudicial/CNO/).