Judiciário
Entrar em presídio com chip de celular não corresponde ao crime disposto no artigo 349 – A do CP
ENTRAR EM PRESÍDIO COM CHIP DE CELULAR NÃO CORRESPONDE AO CRIME DISPOSTO NO ARTIGO 349 – A DO CP
I – HC 619776.
Do que informou o site do STJ, em 27 de abril do corrente ano, entrar em presídio com chip de celular não corresponde ao crime de fazer ingressar aparelho telefônico em estabelecimento prisional sem autorização legal (artigo 349-A do Código Penal). Essa conclusão decorre da observância estrita ao princípio da legalidade, tendo em vista que o legislador se limitou a punir a introdução de telefone ou similar na prisão, não fazendo qualquer referência a seus componentes ou acessórios.
Com esse entendimento, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu do delito previsto no artigo 349-A do Código Penal um detento que, após saída temporária da prisão, voltou para o estabelecimento com três chips de celular.
O relator do habeas corpus, ministro Ribeiro Dantas, explicou que, não havendo lei prévia que defina como crime o ingresso de chip em presídio, impõe-se a absolvição do acusado, como consequência da aplicação do princípio da legalidade.
A matéria foi discutida no HC 619776.
II – PROJETO DE LEI 3.231/20
Para o caso há um Projeto de Lei em discussão na Câmara dos Deputados.
Segundo a Agência Câmara de Notícias o Projeto de Lei 3231/20 torna crime permitir a entrada ou ingressar em estabelecimento prisional com qualquer acessório de celular, rádio ou outro aparelho que permita a comunicação entre presos ou com o ambiente externo. O texto, que altera o Código Penal e a Lei de Execução Penal, está sendo analisado pela Câmara dos Deputados.
A legislação em vigor já considera crime ingressar, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional. A pena prevista nesses casos é de detenção, de três meses a um ano.
Autor do projeto, o deputado Capitão Alberto Neto (Republicanos-AM) argumenta, no entanto, que o objetivo da alteração é punir com a mesma pena quem facilita a entrada ou entra apenas com partes do aparelho de comunicação no presídio.
“As peças de um celular podem ser decompostas, e diversas pessoas podem ingressar com essas peças, de forma que, internamente, possa haver a montagem do aparelho de comunicação”, explica o autor. “Essa prática fomenta o ‘escritório do crime’ em unidades prisionais”, acrescenta.
III – ARTIGO 349 – A DO CÓDIGO PENAL
É diverso o crime que proíbe a entrada de celulares em presídios, à luz da Lei 12.012/09.
Tem-se esse tipo penal:
“Art. 349-A. Ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional. Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.”
Segundo Carlos Lélio Lauria Ferreira e Maurício Kuehne (A proibição da entrada de celular em presídio) tem-se o que segue:
“As modalidades de conduta estão descritas no tipo: ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho conforme descrito. Trata- se de tipo alternativo, nada impedindo, contudo, o cúmulo das ações (o agente pode ingressar com o aparelho, ao mesmo tempo em que está a auxiliar outrem em idêntica empreitada). Quaisquer das ações empreendidas levam à caracterização do ilícito.
Ingressar é dar entrada, fazer ingresso, entrar com aparelho celular ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento penal. É o internamento da pessoa no recinto de um estabelecimento penal, seja em caráter transitório ou definitivo. Evidentemente, deve ser delimitado o ambiente a cuja proibição refere-se a lei, não havendo conduta típica, por exemplo, daquele que se mantém fora do ambiente carcerário, como na área de estacionamento do estabelecimento penal ou em outro local permitido pela autoridade administrativa.
Promover é favorecer, trabalhar a favor, fazer avançar, fomentar, diligenciar para que se realize, se efetue, se verifique a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento penal. A ação pode ser comissiva ou omissiva, mas com objetivo definido, qual seja, a entrada do aparelho no estabelecimento penal. Intermediar é intervir, interceder a favor de alguém no sentido de que a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento penal, seja concretizada. Não raro, a vida carcerária registra fatos em que agentes públicos utilizam-se de sua condição de representantes do Estado para burlar a vigilância em favor de transgressores no momento da revista nos presídios. Nesse caso, o transgressor da norma é agenciador, mediador, interventor. Sua função aqui é a de aproximar os interessados (preso e alguém de fora do presídio, por exemplo) para que o celular entre no estabelecimento. Não é reconhecido como o mandatário da ordem de entrada, pois não conclui o ajuste. Apenas o encaminha entre as partes que o ajustam em definitivo. Evidente que tal circunstância não o exime de responsabilidade penal.
Auxiliar é prestar auxílio ou assistência, ajudar, socorrer o autor do crime a introduzir o celular no estabelecimento penal. Nesse caso, a pessoa é coparticipante de encargo ou função, sem que se mostre ser o agente principal.
Facilitar é tornar fácil a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento penal. A prática do crime, nesse caso, pode ser através de qualquer ação comissiva ou omissiva. É a conduta do funcionário do estabelecimento penal que afasta as dificuldades que poderiam impedir a prática do crime, a qual tinha o dever de reprimir. Tem o sentido de coadjuvar. Difere da conduta consistente em auxiliar que tem conotação de participação na feitura do ato. Facilitar consiste em omissão ou falta de oposição. Não revela participação nem cooperação, mas facilidade decorrente do não cumprimento do dever imposto. E por esta omissão, o ato se praticou.”
O crime é de perigo abstrato. Não se exige a utilização do equipamento ou a sua capacidade de funcionar ou não.
Mas ainda registro daquela obra de Carlos Lélio Lauria Ferreira e Maurício Kuehne:
“Não cogitou o legislador a respeito dos acessórios. Sabido é que pode haver fracionamento de ações. Assim, as peças de um celular podem ser decompostas e diversas pessoas fazerem ingressar as referidas peças e, internamente, haver a montagem do celular. Em hipóteses tais, a nosso ver, não incidirá a norma em comento, contudo, em havendo uso do aparelho (agora montado) incide a norma do art. 319-A, independente da configuração de falta grave, por força da Lei n. 11.466/07.”
O bem jurídico tutelado se refere à Administração da Justiça, claro que subjacente aspecto da Segurança Pública.
O tipo penal exige o dolo como elemento do tipo.
À propósito tenho da lição de Renato Marcão:
“Muito embora o legislador não tenha dito, quando deveria, é inegável que a incidência típica somente surgirá quando a conduta tiver por objetivo proporcionar que o aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, seja introduzido no estabelecimento prisional para chegar em mãos de qualquer pessoa submetida a encarceramento por força de decisão judicial. Só é punível a conduta dolosa. É de se exigir, ainda, a demonstração de dolo específico, evidenciado na intenção dirigida de fazer com que o aparato termine em mãos de quem não poderia recebê-lo em razão de estar submetido a estabelecimento penal. A regra não alcança o simples incauto. Nesta exata medida, não pode se ver exposto à acusação criminal por incidência do art. 349-A do Código Penal aquele que simplesmente ingressa ou tenta ingressar no estabelecimento penal trazendo consigo aparelho de telefonia celular, v.g. É preciso que a conduta tenha por finalidade algo que verdadeiramente tem sentido punir nos moldes da tipificação trazida com a Lei n. 12.012, de 6 de agosto de 2009. O princípio da razoabilidade, dentre outros, assim determina. A inovação revelada no art. 349-A do Código Penal tem relação direta com o crime do art. 319-A, do mesmo Codex, introduzido pela Lei n. 11.466/2007, que pune com iguais conseqüências penais “o Diretor de Penitenciária e/ou agente público que deixar de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”.
Trata-se de crime de menor potencial ofensivo, sobre o qual não cabe a prisão em flagrante, mas a apreensão do objeto e o encaminhamento do autor do fato ao Juizado Especial respectivo, para lavratura do Boletim de Ocorrência. Inscreve-se nas infrações penais de menor potencial ofensivo, sobre o qual cabem a transação e o sursis processual.
IV – O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Observe-se que esse tipo penal não se insere na colocação de chip de celular.
Em razão disso, volto a registrar a lição de Carlos Lélio Lauria Ferreira e Maurício Kuehne:
“Não cogitou o legislador a respeito dos acessórios. Sabido é que pode haver fracionamento de ações. Assim, as peças de um celular podem ser decompostas e diversas pessoas fazerem ingressar as referidas peças e, internamente, haver a montagem do celular. Em hipóteses tais, a nosso ver, não incidirá a norma em comento, contudo, em havendo uso do aparelho (agora montado) incide a norma do art. 319-A, independente da configuração de falta grave, por força da Lei n. 11.466/07.”
O princípio da legalidade eleva a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado.
A lei é uma garantia, o que não exclui, como bem se avisa, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem de sua verdadeira trilha.
Necessário expor, ainda que em poucas palavras, o princípio da legalidade no direito penal, no direito administrativo e no direito tributário.
Diante do princípio da legalidade do crime e da pena, pelo qual não se pode impor sanção penal a fato não previsto em lei, é inadmissível o emprego da analogia (forma de autointegração da lei) para criar ilícitos penais ou estabelecer sanções criminais.
A única fonte direta do direito penal é a lei, diante do princípio da reserva legal.
O princípio da legalidade está inscrito no artigo 1º do Código Penal, reserva legal, no sentido de que “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Assim também é na Constituição Federal, no artigo 5º, XXXIX, quando se dispôs que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Na linha já traçada na Declaração de Direitos Humanos e do Cidadão, de 1789, e que foi insculpido na Constituição de 1824, e dela não saiu mais, só a lei pode ser fonte geradora do ilícito penal. Excluem-se, destarte, quaisquer outros casos de idêntica hierarquia ou, a fortiori, de hierarquia inferior.
Além da anterioridade da lei, como princípio trazido no artigo 5º, XXXIX, referenciado, da Constituição, da reserva legal, há que se mencionar, ainda, a tipicidade. Com efeito, não basta que a lei acene com descrições abstratas ou esfumadas do fato delituoso. É preciso que o comportamento seja descrito em todas as suas minúcias, dando lugar a uma suficiente especificação do tipo do crime. Daí porque, repita-se, não se aceita analogia em sede de direito penal.
As penas e as medidas de segurança devem ser previstas em lei.
Pelo princípio da legalidade, alguém só pode ser punido se, anteriormente ao fato por ele praticado, existir uma lei que o considere como crime. Mesmo que o fato agrida a moral, danoso, não haverá possibilidade de se punir o autor, sendo irrelevante a circunstância de entrar em vigor uma lei que, posteriormente, o preveja como crime.
ENTRAR EM PRESÍDIO COM CHIP DE CELULAR NÃO CORRESPONDE AO CRIME DISPOSTO NO ARTIGO 349 – A DO CP
O princípio da legalidade é a base de sustentação do direito penal.
Volto-me as razões de decisão naquele HC HC 619776.
Em reforço a essa posição, o ministro Ribeiro Dantas citou precedentes do STJ que entenderam ser necessária a estrita observância do princípio da legalidade na tipificação de condutas penais, a exemplo do RHC 98.058, no qual a Sexta Turma afastou uma condenação por adulteração de sinal identificador de veículo porque o fato envolveu um semirreboque, e não um veículo automotor, mencionado expressamente na definição do crime pelo Código Penal.
A conduta de ingressar em estabelecimento prisional com chip de celular não se subsume ao tipo penal previsto no art. 349-A do Código Penal, em estrita observância ao princípio da Legalidade, pois o legislador limitou-se em punir o ingresso ou o auxílio na introdução de aparelho telefônico móvel ou similar em estabelecimento prisional, não fazendo qualquer referência a outro componente ou acessório utilizados no funcionamento desses equipamentos.
Portanto, em decorrência da principiologia básica do direito penal (Legalidade), na falta de lei prévia que defina o ingresso de chip em estabelecimento prisional como comportamento típico (nullum crimen sine lege), impõe-se a absolvição do paciente pelo delito previsto no art. 349-A do Código Penal.