Internacional
Da Saxônia-Anhalt ao México: arte pilhada maia retorna
Depois dos Bronzes de Benim, inusitado achado num porão prova que arte pilhada não é apenas questão para museus. Discussão sobre as consequências do colonialismo deve se estender também à América Latina
Em novembro de 2020, a campainha tocou numa fazenda de Klötze, no estado alemão da Saxônia-Anhalt. Os moradores abriram a porta e se depararam com policiais, que os surpreenderam ao pedir para serem levados até o porão. O proprietário anterior informara à polícia que lá se encontravam desde 2007 dois fuzis da Segunda Guerra Mundial, pertencentes a seu avô, os quais ele enterrara num recipiente de plástico.
Os novos donos não sabiam de nada, e também os agentes se espantaram ao encontrar, no local indicado, não apenas as armas, mas também um tesouro arqueológico insuspeitado: um total de 13 objetos da cultura maia, contando até 1.500 anos.
Nikolai Grube, professor de Antiguidade Americana da Universidade de Bonn, confirmou a legitimidade da achado: apenas uma peça se revelou como falsificação, as demais são originárias de escavações ilegais no México e na Guatemala, supostamente compradas num mercado negro sul-americano. Grube calcula que poderiam ser vendidas a um total de centenas de milhares de euros.
O porão de uma fazenda em Klötze, Saxônia-Anhalt, seria certamente o último lugar onde arqueólogos procurariam objetos de arte das civilizações maia e teotihuacana: por acaso, eles jamais iriam parar lá. Segundo o professor Grube, “tais achados são consequências de longo termo do colonialismo europeu nos séculos 15, 16 e 17”.
Assunto para toda a sociedade
Ativista luta pelo retorno de arte saqueada da África
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Seguindo-se às conquistas espanholas e portuguesas no fim do século 15, a era colonial da América do Sul e Latina se desenrolou sobretudo nos séculos 16 e 17, terminando bem antes do que em outras partes do mundo. Ainda assim, as estruturas colonialistas continuam se fazendo sentir também na região.
O ex-proprietário da fazenda, 66 anos, que vive há anos na França e se apresentara voluntariamente à polícia de Salzwedel, não pode ser culpabilizado pela aquisição dos objetos. Na época, a Lei de Proteção do Patrimônio Cultural ainda não existia, só vindo substituir em 2016 as leis contra o êxodo do patrimônio cultural alemão, para restituição de bens culturais e para implementação da Convenção de Haia de 1957.
Na imprensa alemã, a ocorrência foi classificada como “caso criminal fora do comum”, publicado na seção de “variedades”. No entanto, ela mostra, acima de tudo, que a arte saqueada não se encontra apenas nos museus, mas também em porões e sótãos, na cidade e no campo. Os temas arte pilhada, restituição, colonialismo e responsabilidade não dizem respeito apenas a arqueólogos e cronistas, mas a toda a sociedade.
Na opinião do pesquisador do Instituto Histórico da Universidade de Bonn Florian Helfer, porém, essa noção ainda não penetrou o suficiente a sociedade. Nas escolas, o colonialismo é reduzido a seu papel na eclosão da Primeira Guerra Mundial, sua tematização só serve para explicar o conflito, e “desse modo, a configuração do colonialismo in loco passa a não ter praticamente nenhuma relevância”.
Libertando-se da culpa
Ainda assim, no momento a questão de como lidar com a arte saqueada está cada vez mais no foco do interesse científico e público. E consequentemente acumulam-se também as exigências de restituição.
Recentemente o historiador Götz Aly lançou um livro sobre o caso do “Prachtboot” ou “Luf-Boot”, um barco de 16 metros, pilhado das ilhas do Pacífico Sul por firmas alemãs, no século 19, e destinado a exposição no Fórum Humboldt de Berlim.
Em entrevista à emissora Deutschlandfunk, ele explicou que o primeiro passo para lidar com a arte roubada seria contar a verdadeira história dos objetos nos museus, diretamente nas exposições: “Mostrar que há disposição de esclarecer, garantir a clareza, libertar a sim mesmo. No momento, ainda se procura escapar da responsabilidade convidando um ou outro pesquisador africano ou maori, e cooperando com ele.”
Em relação às esculturas maias e teotihuacán de Saxônia-Anhalt, essa opção não entra em cogitação, pois elas se encontram no tesouro da sede do governo, na cidade de Magdeburg. E em breve serão enviadas de volta à casa: o governador Reiner Haseloff as entregará aos embaixadores mexicano e guatemalteco em 28 de maio de 2021, por ocasião de uma sessão do parlamento federal alemão.
Atualmente, 40% da população da Guatemala ainda pertence ao povo maia. No norte do país, nas ruínas da cidade de Tikal, fica o antigo centro daquela avançada civilização. E perto da capital do México encontram-se hoje os restos da gigantesca Teotihuacán, centro de uma cultura que dominou a América Central no século 1º depois de Cristo.
“Esses objetos também estão manchados de sangue”
Entretanto, o que parece um simples caso de bem-sucedida devolução de patrimônio cultural se revela bem mais complicado: Nikolai Grube discorda que as obras de arte pertençam de direito aos museus e instituições culturais dos respectivos países.
“Os herdeiros legítimos são os povos indígenas latino-americanos. Seus antepassados criaram esses bens culturais. Hoje em dia, porém, não se permite sequer que falem a própria língua, ela não é considerada nas escolas, sua cultura não faz parte da vida nacional. Vigora uma verdadeira espécie de apartheid: os membros da população indígena ou vivem na pobreza, no campo, ou nas favelas da cidade grande. As instituições culturais agem sem a participação deles.”
Devido a essa grande pobreza, por não terem outra possibilidade de conseguir dinheiro, alguns povos indígenas saquearam os objetos de seus próprios sítios culturais, explica o especialista em antiguidade da América. Mas na América Latina ainda se fala muito pouco sobre esse tipo de “colonialismo interno”.
No contexto da devolução pela Alemanha dos Bronzes de Benim à Nigéria, o debate sobre a arte pilhada africana está a pleno vapor. “É certo que seja assim, e deveria ter ocorrido muito antes, até por a culpa das colônias alemãs ser especialmente grande”, confirma Grube. “E agora, seria preciso isso também para a América do Sul. Todos esses objetos estão manchados de sangue, ele só é mais antigo.”