Judiciário
O decano e a mineração
Da promotoria de Osasco à aula de Direito Minerário no Supremo Tribunal Federal
Da promotoria de Osasco à aula de Direito Minerário no Supremo Tribunal Federal
Em 30 de março de 1977, um então promotor de Justiça de Osasco/SP foi convidado para discursar na inauguração do Fórum da cidade.
Parecia valer-se do conforto de temas retóricos ao falar sobre a importância da liberdade e do respeito aos direitos: “Liberdade é significar independência, e estado de direito é evidenciar o primado da lei sobre o arbítrio”[1]. Mal sabíamos que aquele representante do Ministério Público ocuparia uma das cadeiras do Supremo Tribunal Federal – STF, e que seria chamado a materializar seu discurso para proteger a Constituição em milhares de casos envolvendo condutas arbitrárias do Estado. Mal sabíamos que, quase 20 anos depois, ele se tornaria o protagonista de uma decisão que, consistente com suas palavras em Osasco, viria a ser o primeiro precedente constitucional relevante de Direito Minerário pós-constituição de 1988.
No julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 140.254[2], o decano proferiu o voto que ratificou o aspecto patrimonial dos títulos minerários na nova ordem constitucional. Capturando a essência do art. 176 da Constituição – com menos de 10 de anos de idade à época – diferenciou a jazida (bem da União) de consentimento estatal (título de lavra) que garantia ao seu titular o aproveitamento daquela.
Ao reconhecer que o Poder Público (no caso, a Companhia Energética do Estado de São Paulo – CESP) esvaziava economicamente determinados títulos minerários ao construir linhas de transmissão sobre áreas mineralizadas, garantiu ao minerador o direito à indenização plena.
A decisão consagrou vários entendimentos clássicos, em escala constitucional, de conceitos forjados na prática jurídica mineral, inclusive estrangeira. Ainda que o STF já tivesse enfrentado casos semelhantes, tratavam de disputas relativas às controvérsias sobre a indenização de perdas em minas desprovidas de títulos minerários ou não manifestadas[3].
Ao afirmar que os títulos de lavra constituem res in comercio, reconheceu a sua economicidade autônoma, fazendo eco à preciosa doutrina de Ernst Freund em seu Administrative Powers over Persons and Property[4], de 1928, trazida aos brasileiros pela obra clássica de Hely Lopes Meirelles[5].
Ao defender que o impedimento causado pelo Poder Público na exploração empresarial das jazidas legitimamente concedidas gera o dever estatal de indenizar o minerador, a decisão se alinhou ao item nº 4 da Resolução da Nações Unidas nº 1803/62, sobre os limites e consequências da nacionalização, expropriação e requisição de áreas mineralizadas ou títulos que inviabilizem os projetos a elas atrelados.
Ao afirmar que o valor econômico da jazida legalmente explorável incorpora-se ao patrimônio jurídico daquele a quem se outorgou o título de lavra, o precedente estabeleceu a amplitude da necessária compensação, não restrita aos investimentos feitos pelo minerador, mas, sim, aos resultados que seriam obtidos com a atividade de lavra.
Em 1995, ano do voto, quase não havia doutrina de Direito Minerário publicada no Brasil, ressalvados os clássicos de Elias Bedran[6], Atílio Vivacqua[7], Lauro Lacerda da Rocha/Carlos Lacerda[8] (escritos com base em Constituições anteriores) e o recém-publicado Comentários ao Código de Mineração, de William Freire[9].
A interpretação precisou ser construída com base nas lições dos administrativistas, e, claro, nas convicções sobre a liberdade e proteção da propriedade, talvez estimuladas pela experiência escolar na Robert E. Lee Senior High School, em Jacksonville, Flórida (EUA), onde o decano finalizou o ensino médio.
Celso de Mello vai se aposentar. Em carta à Presidência do STF, antecipou a data para o próximo 13 de outubro. Inúmeras homenagens já começarem a ser feitas. Mas outra, pouco conhecida do grande público, merece ser destacada: a sua singela, porém certeira, contribuição para fortalecimento de uma das bases essenciais do Direito Minerário brasileiro.
Que o legado dessa decisão possa inspirar novos precedentes, e que, como enfatizou o decano na sua recente saudação aos novos presidente e vice-presidente do STF[10], que a integridade e a supremacia da ordem constitucional e do regime democrático, e a intangibilidade das decisões desta Corte Suprema sejam replicadas nos casos que demandarem a proteção, pelo Poder Judiciário, da indústria mineral, mantendo-se vivo o espírito do Promotor de Osasco.
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[1] Diário Oficial do Estado de São Paulo, 31/03/1977, p. 70.
[2] Julgado em 05/12/1995 e publicado em 06/06/1997.
[3] Sobre o conceito de mina manifestada: art. 6º, I, do Código de Mineração.
[4] FREUND, Ernst. Administrative powers over persons and property: A comparative survey. University of Chicago Press, Chicago, 1928.
[5] MEIRELLES, Hely Lopes, et al. Direito administrativo brasileiro. Vol. 3. Revista dos Tribunais, 1966.
[6] BEDRAN, Elias. A Mineração à Luz do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Alba Ltda, 1957.
[7] VIVACQUA, Attilio. A nova política do sub-solo e o regime legal das minas. Rio de Janeiro: Panamericana, 1942.
[8] ROCHA, Lauro Lacerda e LACERDA, Carlos. Comentários ao Código de Mineração do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1983
[9] FREIRE, William. Comentários ao Código de Mineração. William Freire. Rio de Janeiro: Aide, 1995.
[10] Saudação de 25/06/2020, na Sessão Plenária que elegeu o Ministro Fux e a Ministra Rosa Weber para a Presidência e a Vice-Presidência do STF, respectivamente.