Aung San Suu Kyi, de ícone democrático a pária internacional
Política de Mianmar já foi celebrada em livros, filmes e canções como símbolo da luta pelos direitos humanos no país asiático. Hoje, guinadas inesperadas e decisões questionáveis a colocam na berlinda da opinião mundial
São poucas as personalidades contemporâneas de projeção mundial que vivenciaram uma ascensão e queda comparável à da política Aung San Suu Kyi. Antes celebrada como Nobel da Paz, ícone dos direitos humanos e paladina da democracia em Mianmar, hoje ela é injuriada como cúmplice dos militares na expulsão e no genocídio da minoria muçulmana rohingya.
Aung San Suu Kyi nasceu em 19 de junho de 1945, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Ela entrou relativamente tarde para a política, embora, na qualidade de filha do herói da independência birmanesa Aung San, ela sempre tenha dito que seu dever era servir ao país.
Ingresso na vida política e prisão
O chamado do povo chegou em 1988. A essa altura, Aung San Suu Kyi já tinha 43 anos, havia criado dois filhos e atuava no setor acadêmico. Protestos estudantis abalavam as bases do regime socialista unipartidário, mas à população insurreta faltava um personalidade capaz de reunir as diferentes forças oposicionistas. Os estudantes apelaram para Aung San Suu Kyi, e ela não hesitou.
Diante de uma plateia estimada em 500 mil ouvintes, ao pé do Pagode Shwedagon, o centro religioso budista de Mianmar, no fim de agosto de 1988 ela se referiu a uma “segunda luta pela independência nacional”. Desse modo, assumia a herança paterna e ao mesmo tempo declarava como perdidos os 50 anos entre a independência de 1948 os protestos do momento.
O mais tardar com esse discurso, Aung San Suu Kyi se transformou numa incontestável figura de identificação política para grande parte da população birmanesa. No entanto, o clima de libertação revolucionária não durou muito.
Em setembro do mesmo ano, um golpe das Forças Armadas deu fim ao levante popular que precipitara o país no caos. Milhares morreram, muitos estudantes escaparam para o exterior, oposicionistas foram encarcerados por décadas. Ao mesmo tempo, os militares prometiam novas eleições e um sistema pluripartidário.
Pouco depois do golpe, Aung San Suu Kyi criou, com alguns ex-militares, a Liga Nacional pela Democracia (NLD), tornando-se sua secretária-geral. As eleições prometidas se realizaram em 1990, e surpreendentemente o partido obteve mais de quatro quintos dos assentos parlamentares – também graças à mulher que, para muitos eleitores, encarnava o ideal budista de uma figura de liderança moral e espiritual.
O resultado das urnas jamais foi implementado, Aung San Suu Kyi foi colocada sob prisão domiciliar. Entre julho de 1989 e novembro de 2010, ela passou um total de 15 anos isolada em sua casa na cidade de Yangon.
Ícone pop da democracia
A atenção internacional crescente conferiu uma nova dinâmica ao conflito em Mianmar. Antes de Aung San Suu Kyi receber o Prêmio Nobel da Paz em 1991, só alguns especialistas se interessavam pelo país. No entanto, ao receber a prestigiosa distinção, a ativista política se transformou num ícone dos direitos humanos e da democracia.
No exterior, estabeleceu-se um contraste apelativo: de um lado, a bela e corajosa budista, que meditava em prisão domiciliar, incorporara a filosofia de não violência de Mahatma Gandhi e pregava a democracia e a “libertação do medo”. Do outro, os militares inescrupulosos, enriquecendo-se à custa do povo e do país.
Em livros, filmes e na música pop, Aung San Suu Kyi tornou-se um ícone pop dos direitos humanos. No entanto, ela pagou um preço alto por isso: quando seu marido, o tibetólogo Michael Aris, adoeceu gravemente de câncer, a junta militar negou-lhe o ingresso no país, alegando que lá não receberia tratamento médico adequado.
Em contrapartida, o regime permitiu que Aung San Suu Kyi viajasse para Londres. Mas ela rejeitou a oferta, bem sabendo que não teria mais como retornar à terra natal para prosseguir sua luta.
“Sou política, e não defensora dos direitos humanos”
Durante anos, reinara uma situação de impasse entre os militares e Aung San Suu Kyi e sua NLD: se ela não tinha como converter seu capital moral em poder político, a junta tampouco conseguia se livrar da imagem de ditadura sedenta de poder. Até 2010.
Nesse ano, realizaram-se eleições legislativas em Mianmar, nos termos de uma Constituição aprovada dois anos antes pelos militares. O ex-general Thein Sein tornou-se presidente, anunciando um abrangente programa de reformas e a abertura do país asiático.
Liberada da prisão domiciliar, a líder oposicionista tinha que tomar uma decisão: ou se recusar a participar politicamente dentro dos estreitos limites impostos pela Constituição dos militares, ou entrar para a política segundo as regras da junta.
Ela optou por participar do processo político, contra os princípios mais radicais. Aos críticos perplexos, Aung San Suu Kyi explicou: “Fico sempre surpresa quando as pessoas falam como se eu tivesse acabado de virar política. Eu me engajei na política, e não como defensora ou ativista dos direitos humanos.”
Decepção política e massacre dos rohingyas
Nas eleições gerais seguintes, em 2015, a NLD venceu em peso. A Constituição impedia Aung San Suu Kyi de se tornar presidente, pois seu marido era estrangeiro, então ela assumiu o cargo de conselheira de Estado, criado especialmente para ela, equivalente ao de primeiro-ministro. A democracia – assim rezava o veredito quase unânime da imprensa mundial – finalmente vencera.
Porém logo se revelaram as primeiras fissuras no belo quadro: o processo de paz no país ainda marcado pela guerra civil recebeu alguns duros golpes; os esperados êxitos econômicos não se concretizavam; fracassava a maioria das tentativas de mudar o sistema a partir de dentro.
Após a posse do governo da NLD, em outubro de 2016 e agosto de 2017 a milícia muçulmana Arakan Rohingya Salvation Army (Arsa) atacou forças de segurança birmanesas no estado Rakhine, no leste do país.
O Exército nacional reagiu com violência desproporcional. Mais de 700 mil rohingyas fugiram para Bangladesh, onde relataram atrocidades dos militares incluindo massacres e estupros. A ONU classificou a situação como “limpeza étnica”.
Aung San Suu Kyi só se manifestou sobre esses episódios muito tarde e de maneira reticente, o que, aos olhos de diversos ativistas dos direitos humanos e antigos apoiadores, a transformou em cúmplice dos militares. Em consequência, lhe foram retiradas algumas condecorações e prêmios, entre os quais o da Anistia Internacional.
Uma vida fora do próprio controle
Em dezembro de 2019, Aung San Suu Kyi voltou a surpreender o mundo ao declarar que representaria pessoalmente Mianmar diante Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. A República da Gâmbia iniciara um processo contra o país perante a suprema corte das Nações Unidas por violar a convenção da ONU para prevenção e punição do genocídio.
A sentença definitiva do TPI só é esperada daqui a alguns anos. Porém o depoimento de Aung San Suu Kyi diante da corte – em que, com expressão pétrea, negou que os militares tivessem pretendido exterminar os rohingyas totalmente ou em parte – danificou consideravelmente a reputação dela no exterior.
Em seu país, o efeito foi contrário. A conselheira estatal aproveitara bem a ocasião para, no contexto da campanha eleitoral em curso, se postar diante de Mianmar como figura protetora. A população fechou fileiras atrás da “Mamãe Suu” e das Forças Armadas: os antigos inimigos se tornaram aliados.
A tortuosa biografia da política birmanesa é cheia de contradições, guinadas inesperadas e expectativas frustradas. Acima de tudo, porém, é uma prova de quão pouco controle ela tem sobre sua própria vida e o que foi feito dela. Após o golpe militar desta segunda-feira (01/02), mais uma vez o papel de Aung San Suu Kyi pode vir a desempenhar no futuro parece estar fora de seu controle.