Judiciário
O visconde e a Lei de Improbidade Administrativa
O ponto mais polêmico do PL 10887/2018, que propõe alterações à disciplina da improbidade administrativa
O ponto mais polêmico do PL 10887/2018, que propõe alterações à disciplina da improbidade administrativa
Vem ocupando a ribalta das discussões jurídicas o Projeto de Lei nº 10.887/2018 – A, que propõe alterações à disciplina da improbidade administrativa. Não se desconhece que a participação da sociedade no processo legislativo enriquece a cidadania, principalmente quando se deve considerar que a elaboração da Lei nº 8.429/92 transcorreu num período politicamente conturbado (impeachment do Presidente Collor), de modo que o Projeto de Lei nº 1.446/1991[1] foi aprovado à rapidez de um lince, sem maiores debates, a despeito da relevância da matéria.
Faz-se necessário, contudo, que as discussões se guiem por argumentos jurídicos e de experiência prática, devendo a sociedade ser poupada das razões que enveredem por jargões genéricos, desacompanhados de uma exposição objetiva. O racionalismo aqui se impõe. As paixões são mais adequadas aos jogos esportivos e nestes devem ficar.
O ponto mais polêmico recai na alteração do art. 11, na parte que tipifica o simples descumprimento de princípios. A proposta, alterando a disciplina da matéria, entende que a violação a um princípio, por si só, não ensejará a prática de ato ímprobo. Este somente poderá se verificar caso a conduta do agente público corresponda a uma das ações descritas em um dos seus incisos.
Sinto-me à vontade para defender a proposição. Aliás, já a defendi à moda de interpretação[2], entendendo que o reconhecimento da prática de improbidade administrativa, nessas situações, colide com o princípio da segurança jurídica, visto sob a perspectiva da certeza do Direito.
No Estado constitucional, duas são as condições para a legitimidade da lei, consistindo na sintonia entre os princípios da constitucionalidade e da maioria.
A despeito da hoje incontestável natureza normativa dos princípios, bem assim de sua qualidade de lastro fundante da ordem jurídica, não se pode ignorar que, no Estado de Direito, legalidade e segurança – que, coincidentemente, são dois princípios fundamentais consagrados pela Constituição de 1988 – mesclam-se na proteção da liberdade do cidadão.
A segurança jurídica, nesse particular, requer, dentre as suas várias características, duas que se apresentam de importância primordial para a discussão. A primeira delas é a que reclama a clareza do conteúdo da norma, a fim de que possa ser compreendida pelos seus destinatários quanto aos mandatos, proibições e autorizações, numa linguagem simples e compreensível. A outra há que consistir na capacidade do texto de disciplinar o seu objeto de forma suficiente, devendo se evidenciar completo em sua formulação e delinear, com precisão, o campo fático a que se reporta.
Isso é comprometido, em matéria de tipicidade, com a só referência aos princípios, seja diante da vagueza de sua carga semântica, inevitavelmente plurissignificativa, seja, no cenário brasileiro, pela inflação quanto à sua identificação[3]. Nesse diapasão, Canotilho[4] frisou que, na atualidade, a sedução pelos princípios acabou por converter-se num verdadeiro passe-partout retórico-dogmático, sendo uma chave capaz de abrir todas as portas.
Procurando um tratamento adequado à questão, Atienza e Juan Manero[5], valendo-se do préstimo do conceito de tipicidade formulado pelos penalistas, os quais distinguem os tipos de garantia dos tipos sistemáticos, rematam que os delitos – aqui, sem dúvida, podendo-se inserir as infrações à ordem administrativa – devem ter a sua tipificação em regras, quer dizer, em padrões os mais específicos possíveis, e não em meros princípios, pois haveria o risco de se quebrantar o princípio da legalidade estrita. Daí discriminarem os ilícitos típicos, caracterizados por violações a regras, dos ilícitos atípicos, que seriam condutas violadoras de princípios, de que seriam exemplos o abuso de direito, a fraude à lei e o desvio de poder.
A manutenção do preceito na sua redação original é capaz de conduzir à volta de experiência semelhante à praticada pelo direito penal do Ancien Régime, permitindo que o estabelecimento da conduta a ser sancionada por ímproba emane, de fato, do próprio juiz – e, muitas vezes, do seu humor e convicções pessoais -, ao invés da previsão em lei de tipo suficiente, que contenha uma descrição precisa de seus elementos essenciais. Isso sem contar que o trabalho desenvolvido por Beccaria e Voltaire teria sido em vão.
Uma amostra prática – e densamente real – disso nos oferece Ítalo Calvino em seu “O visconde partido ao meio”[6]. Esbanjando em leveza, a narrativa do autor se desloca para um imaginário Visconde Medardo di Terralba, o qual, numa batalha contra os turcos, foi atingido por um tiro de canhão, vindo a sobreviver, mas somente lhe restando a metade de seu corpo. Ao voltar ao seu condado, aguardava-lhe presidir um julgamento contra uma quadrilha presa no dia anterior pelos guardas do castelo sob a acusação de terem assaltado cavaleiros toscanos que por suas terras passavam no caminho da Provença.
O chefe dos bandidos se defendeu afirmando que assim atuaram porque tais cavaleiros, na sua passagem pelo feudo, encontravam-se a caçar sem que os guardas exercessem qualquer vigilância. No seu veredito, Medardo condenou a quadrilha por morte na forca, em virtude da rapina, mas como as vítimas eram caçadores ilegais, condenou-os igualmente. Quanto aos guardas, porque intervieram tarde demais, determinou também que morressem enforcados.
Se a partir daí veio a crença de que da batalha somente voltara a metade má de Medardo, não menos evidente resta a reminiscência da elasticidade e arbitrariedade do poder de punir à época, cujo revivescimento o emprego dos princípios, ao feitio de erudição, fatalmente propiciará.
P.S.: Ao final, retorna a metade boa de Medardo, que é junta à má depois de um duelo. Agora um homem inteiro, aquele viveu feliz, casou, teve quatro filhos e fez um bom governo. Que venha a outra metade!
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[1] Foi submetido pelo Poder Executivo em data de 16-08-1991.
[2] Improbidade administrativa: uma leitura do art. 11 da Lei 8.429/1992 à luz do princípio da segurança jurídica. Revista Trimestral de Direito Público, v. 61, p. 87-98, 2015.
[3] Rui Medeiros, durante arguição de trabalho de pós-doutoramento defendido por este autor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, afirmou, em tom de chiste, que, no Brasil, os princípios constituem verdadeiro catálogo telefônico.
[4] Princípios: entre a sabedoria e a aprendizagem. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 82, p. 3, 2006.
[5] Ilícitos atípicos. 2ª ed. Madri: Trotta, 2006, p. 25-27.
[6] São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 29-30. Tradução de Nilson Moullin.
AUTOR
EDILSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR – Magistrado de carreira do Poder Judiciário Federal desde 25/08/1993. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) desde 21/07/2010 e atual Presidente deste órgão. Diretor da Escola de Magistratura Federal (03/04/2017 a 02/04/2019). Representante do TRF5 Região no Tribunal Regional Eleitoral-PE (08/04/2019 a 29/03/2021). Professor titular da Faculdade de Direito do Recife-UFPE. Pós-doutor em Direito Público pela Universidade de Coimbra – Portugal.