Internacional
Reino Unido inicia formalmente revisão da Lei de Arbitragem de 1996
Texto é visto como um dos elementos fundamentais para o sucesso inglês como principal centro internacional de arbitragem
Texto é visto como um dos elementos fundamentais para o sucesso inglês como principal centro internacional de arbitragem
Cerca de três meses antes da Lei de Arbitragem brasileira era promulgada no Reino Unido uma lei voltada a consolidar e melhorar o direito referente à arbitragem. Passados pouco mais de 25 anos a Comissão Jurídica decidiu iniciar estudos para a reforma dessa lei [1]. Dada a grande difusão da arbitragem inglesa, é interessante observar quais são os pontos passíveis de reelaboração futura.
Embora existam vários outros fatores importantes para que Londres tenha se convertido no principal centro internacional de arbitragem, como a atuação da mais do que centenária London Court of International Arbitration (LCIA) e um Judiciário bastante simpático ao instituto, a Lei de Arbitragem é vista como um dos elementos fundamentais para o sucesso inglês nesse campo. Ao que parece, não haveria pressões específicas para a remodelação legal, apenas a preocupação com a melhora.
Válida apenas para Inglaterra, Gales e Irlanda do Norte, a Lei de Arbitragem não é aplicável na Escócia, que regulou a matéria em 1990, com base na Lei Modelo da Uncitral sobre arbitragem comercial internacional. A lei ora analisada não se pautou por tal parâmetro, mas buscou uma forma própria de tratamento do instituto.
Logo no início a lei estabelece princípios que determinam “a justa solução das disputas por um tribunal imparcial sem demora ou despesas desnecessários” como finalidade da arbitragem e a ampla liberdade das partes, preservadas as “salvaguardas necessárias conforme o interesse público” (artigo 1º, a e c). Ao contrário da lei brasileira, para a qual a sede da arbitragem parece não desempenhar um papel importante, a lei inglesa não admite a arbitragem sem sede, devendo ser suprida a ausência de designação expressa em vista do “acordo entre as partes e todas as circunstâncias relevantes” (artigo 3º). Há várias outras diferenças, estruturas e a respeito de normas específicas. Nesse artigo, porém, o foco se põe nas possíveis alterações propostas.
A Comissão Jurídica apresenta seis pontos, nomeadamente:
Quanto à rejeição preliminar de pedidos e defesas sem fundamento suficiente, a lei atual não contém regras específicas nessa matéria. Discute-se, porém, a possibilidade de adotar um procedimento sumário para análise de objeções preliminares, algo similar à regra 41(5) das Regras de Arbitragem do Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (ICSID) [2], onde se prevê a pronta decisão do tribunal na matéria. A ideia é consistente como o princípio geral de economia de tempo e, principalmente, de recursos.
A competência dos órgãos jurisdicionais para dar apoio aos procedimentos arbitrais já é ampla. É possível o cumprimento forçado de ordens peremptórias do tribunal arbitral, exigindo-se que o órgão judicial esteja convicto de que não havia mais soluções arbitrais possíveis e a pessoa tenha deixado de cumprir uma ordem do tribunal arbitral (Sec. 42). Órgãos jurisdicionais podem, ainda, assegurar a presença de pessoas para prestar testemunho ou apresentar documentos ou outras provas, desde que a pessoa esteja no Reino Unido e os procedimentos do tribunal arbitral ocorram na Inglaterra, Gales ou Irlanda do Norte (Sec. 43).
O objeto proposto para alterações, não obstante, é o exercício pelas cortes de poderes para auxiliar na arbitragem, os quais estão determinados na Sec. 44 e compreendem oitiva de testemunhas, obtenção e conservação de provas e ordens sobre a propriedade (inspeção, fotografia, preservação, custódia e retenção), bem como retirada de amostras e observação por meio de experimentos. Abrangem, também, a venda dos bens sujeitos ao procedimento, exercício de medidas de acautelamento ou nomeação de administrador judicial. A matéria mais controversa é a do exercício desses poderes contra terceiros na arbitragem e há dúvidas a respeito de a quais poderes, além da produção e conservação de provas, terceiros estariam submetidos. É algo que deverá ser tratado na revisão.
Como é de se esperar, a lei inglesa estabelece a competência do tribunal arbitral para decidir a respeito de sua própria competência. Admite, não obstante, meios arbitral e jurisdicional para a revisão de decisões nessa matéria (Sec. 30). No próprio tribunal, a objeção deve ser levantada pela parte até, no máximo, sua primeira manifestação em matéria de mérito; o tribunal pode tratar a questão em uma sentença preliminar sobre a jurisdição ou na sentença de mérito (Sec. 31). Com vistas a evitar dispêndios desnecessários, a lei admite a análise judicial da jurisdição arbitral sob condições subjetivas bastante limitadas: a) o consentimento de todas as outras partes no procedimento ou b) a anuência do tribunal arbitral e comprovação de três requisitos materiais (provável economia de custos, pedido sem qualquer atraso e haver alguma boa razão para isso não ser decidido na arbitragem). Há, ademais, fortes limites a apelação nesse procedimento (Sec. 32). Trata-se, com efeito, de um tipo excepcional de consulta ao órgão judicial e, na prática, é raríssima.
A lei de arbitragem inglesa também admite a apelação em matéria de direito (appeal on point of law, Sec. 69). É um procedimento bastante restritivo e não tem causado qualquer problema real ao bom funcionamento da arbitragem no Reino Unido. Observe-se que se trata de regra dispositiva e é comumente afastada pelas partes e na estrutura das regras arbitrais institucionais. Trata-se de disposição específica para arbitragens sujeitas à lei inglesa, posto que não faria sentido controlar a aplicação de normas alienígenas.
Uma crítica ao instituto é o risco que tal apelação infligiria à confidencialidade. Contudo, esse é muito mitigado pela limitação, ao menos em princípio, dos documentos que podem ser avaliados: a sentença e o contrato [3]. Casos recentes de apelações bem sucedidas – dois casos no biênio 2019-2020 – são indicadores da excepcionalidade e não permitem imaginar qualquer tendência de uma maior facilitação da apelação [4]. De qualquer modo, seria possível uma reversão da aplicabilidade da regra sobre apelação aos tribunais de opt-out para opt-in, ou seja, o Direito inglês continuaria admitindo a apelação a suas cortes, mas entre as condições de admissibilidade estaria a existência de uma opção expressa das partes em aceitar o sistema.
Quanto a regras sobre confidencialidade, a lei inglesa não incorporou um regime específico. Trata-se de uma opção deliberada, pois não havia à época clareza a respeito das exceções e a matéria foi considerada controversa demais para ser tratada legislativamente, deixando-se ao common law a tarefa de desenvolver o regime [5]. É o que efetivamente ocorreu nos últimos 25 anos, dando mais base para uma possível incorporação do tema à lei. No common law inglês atual é reconhecido um dever implícito de confidencialidade e, em face da dinâmica dos procedimentos e do interesse das partes na arbitragem, ocupa uma posição de destaque, inclusive gozando de precedência sobre o dever de revelação (disclosure) [6]. Há, nessa matéria, uma difícil tarefa a ser enfrentada, pois há crescentes tensões entre o interesse das partes na confidencialidade e a demanda por mais transparência, sobretudo em questões envolvendo políticas e interesse público.
Por fim, as regras sobre documentação e reuniões digitais se mostraram particularmente convenientes no contexto da pandemia da Covid-19 e as mudanças que trouxe para muitas das atividades humanas. A Comissão Jurídica já trabalha em proposta geral para admissão de documentação comercial eletrônica, a qual deveria 1) ser do tipo arrolado na legislação [7], 2) ser passível de controle exclusivo por uma única pessoa e 3) que tal controle seja integralmente transferido para o novo possuidor. Mais do que o valor constitutivo ou probatório dos documentos, porém, devem ser abordadas questões como a disclosure de documentação eletrônica e as audiências telepresenciais. O objetivo geral parece ser o de preparar o terreno para o enraizamento das formas de solução de disputas online de maneira a manter a sede inglesa atraente.
É interessante refletir sobre cada ponto da reforma e compreender as soluções brasileiras para os mesmos problemas. Por aqui, porém, o processo legislativo não parece se pautar pelas mesmas preocupações e sistemática e, infelizmente, tem vez por outra adotado um tom perigosamente populista em detrimento do instituto.
O processo de revisão da lei britânica em matéria de arbitragem pode ser inspirador em diversos sentidos. Em primeiro lugar, ressalta a importância da antecipação e busca antecipada de soluções, sobretudo para uma jurisdição voltada a preservar a liderança mundial. As alterações discutidas têm o sentido de tornar mais eficientes e seguros os procedimentos arbitrais, de maneira a manter o a centralidade da sede inglesa. Por outro lado, o processo legislativo é informado por estudos amplos, cuidadosos e detalhados de maneira a evitar projetos tendentes apenas a incorporar o desenvolvimento decorrente dos precedentes judiciais e, ao mesmo tempo, a busca de soluções reativas a problemas resultantes da aplicação da lei anterior. O olhar para o futuro e o esmero na elaboração das normas, inclusive por meio de amplos e sistemáticos instrumentos participativos, garantem parte do ambiente institucional e normativo que favorece a arbitragem.