Educação & Cultura
Etnomatemática para valorizar culturas e diversificar as aulas
Explorar essa perspectiva pode garantir aulas mais ricas, criativas, contribuindo para o engajamento da turma e para um currículo decolonial
Se você perguntar o comprimento da frente de uma casa a três pessoas diferentes, pode ser que as respostas não sejam iguais. Se uma delas for uma criança, por exemplo, ela pode medir com os próprios pés. Outra pessoa, com passos e uma terceira, usar uma trena. Assim, uma resposta chegará em pezinhos, outra em passos e a terceira em metros. E qual das três estará correta?
Do ponto de vista da Matemática padronizada, uma dessas pode ser a melhor, a esperada. Porém, para a etnomatemática, todas são valorizadas e ajudam na construção do conhecimento.
A situação hipotética é a maneira que o professor Getúlio Rocha Silva exemplifica o que é a etnomatemática. Segundo ele, o termo tem diferentes vertentes, mas a concepção mais utilizada no Brasil é a elaborada por Ubiratan D’Ambrosio. A definição, em resumo, diz que a etnomatemática é a arte de conhecer em diversos contextos culturais, explica Getúlio, que tem licenciatura em Matemática, é mestre em Cultura e Sociedade e já trabalhou em redes municipais e estaduais e, hoje, atua no Instituto Federal da Bahia (IFBA).
“Como as culturas são distintas, a etnomatemática reconhece que os saberes também podem ser”, afirma o professor. No entanto, admitir um saber não impede de compreender o outro. E mais do que isso, levar parte dessa variedade para a escola pode garantir aulas mais diversas, criativas, contribuindo para o engajamento da turma, para a recomposição de aprendizagens e, principalmente, para fazer frente a um currículo eurocêntrico, aplicando as leis 10.639 e 11.645 nas atividades de Matemática.
Formação docente para atuar com a temática
Para Getúlio, o ensino de Matemática precisa avançar no cumprimento das legislações citadas anteriormente. Ele ressalta que muitos docentes argumentam que a formação inicial pouco ou nada colabora para a preparação do professor nesse sentido.
Para Élida de Sousa Peres, professora de Matemática da EEEF Santo Afonso, em Belém (PA), e doutoranda em Ciências da Matemática pela Universidade Federal do Pará (UFPA), esse contato veio com o tempo. Ela se aprofundou na temática durante a monografia, que acabou resultando em um projeto de intervenção pedagógica. “A etnomatemática contribui, na formação docente, no sentido de mostrar ao educador uma maneira diferenciada de trabalhar elementos culturais relacionados aos conteúdos e também para propiciar um discurso do quão importante são as relações étnico-raciais.”
Estratégias para usar a etnomatemática na aplicação das leis 10.639 e 11.645
Existem diversas formas de levar essa perspectiva para a sala de aula. Nos Anos Iniciais e no começo dos Anos Finais, por exemplo, é possível que ao tratar de sistemas de numeração, os docentes investiguem com seus alunos os sistemas de culturas africanas ou indígenas. Se os professores mostrarem que, durante a história da humanidade, existiram diferentes formas de contar, com diferentes bases numéricas, eles já estarão evidenciando que o desenvolvimento da Matemática não foi linear e que o conhecimento também é influenciado pelas diferentes culturas.
Uma abordagem pode ser a partir do povo Guarani, cuja a principal base da contagem é o cinco. Esse fato está relacionado com um padrão reconhecido por eles no caule da mandioca, alimento importante para as culturas indígenas. Quanto aos antigos africanos, Getúlio conta que diversos povos utilizaram diferentes bases numéricas – como a do dois, quatro, 10, 20 – e alguns deles, inclusive, lançaram mão de sistemas compostos por mais de uma base.
Porém, mais do que mostrar as diferenças, esse tipo de debate nas aulas de Matemática ajuda a desconstruir ideias preconceituosas. “As pessoas, em geral, acreditam que indígenas e africanos antigos não sabiam contar. Isso faz com que o conhecimento matemático esteja associado às culturas dominantes. Contudo, sabemos que isso não é verdade”, afirma Getúlio.
Para exemplificar, o professor cita o imti, do povo Palikur, e o katyba, dos waimiri-atroari. Os dois são calendários para festas – geralmente confeccionados com tiras de caules. “Tanto o imti, quanto o katyba são convites para festas. Os indígenas os utilizavam para contar os dias que faltavam para esses eventos”. Neste caso, a etnomatemática não tem a pretensão de mostrar apenas que as formas de contar são diferentes, mas comprovar que, nessas culturas, assim como em diversas outras, os grupos sociais desenvolveram estratégias para contar e medir.
“Povos africanos antigos também utilizaram marcas em ossos. Nós, em cordas para registro de contagem, o que demonstra que existia uma cultura matemática”, frisa Getúlio.
Além de sistemas de numeração, é possível pensar em outras áreas do componente curricular. A Geometria oferece bons caminhos. “Podemos estudar propriedades matemáticas nas artes indígenas ou africanas, como fez Paulus Gerdes, e mostrar que em outras culturas existiram conhecimentos matemáticos. Essa também é uma forma de combate ao racismo”, diz o professor.
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Cultura Akan, estampas africanas e geometria
Foi costurando o combate ao racismo com conhecimento africano e Matemática que a professora Élida de Sousa Peres passou a trabalhar a tecelagem e símbolos adinkras na perspectiva dos padrões geométricos.
A simbologia Adinkra – que representa aforismos – é originária da cultura Akan, constituída por grupos étnicos e linguísticos da África Ocidental. Esses grupos são reconhecidos pelas habilidades em tecelagem, destacando-se nos territórios de Gana e Costa do Marfim.
Por meio das estamparias, diz a educadora, é possível explicar para os alunos padrões geométricos e abordar simetria de rotação, reflexão e translação, além de debater resistência, história e cultura afro-brasileira.
“A discussão do conceito em padrões geométricos nos tecidos afro-brasileiros é interessante para falar da junção dos símbolos com a Matemática, revelando relações do componente com a arte, a identidade e a cultura”, ressalta Élida.
A proposta também é uma oportunidade dos professores de Matemática pensarem em parceria com educadores de outros componentes. “É uma forma das aulas de Matemática dialogarem com outras áreas de conhecimento de forma interdisciplinar, possibilitando novas práticas educativas conectadas às práticas socioculturais”. Segundo Élida, isso valoriza os saberes tradicionais e contribui com formas diferentes de ensinar, facilitando que todos aprendam.
Reconhecimento e respeito por meio dos fazeres matemáticos
A professora Claudia Lorenzoni dá aulas para o Ensino Médio, na Licenciatura em Matemática e no mestrado e doutorado em Educação em Ciências e Matemática do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), além de também já ter atuado no Ensino Fundamental. Para ela, que é líder do Grupo de Pesquisas em História da Matemática e Saberes Tradicionais (GHMat) do Campus Vitória, diferentes matemáticas foram produzidas em função de diversas realidades socioculturais e ambientais.
“Uma análise mais atenta da história mostra como a Ciência, particularmente a que chamamos de Matemática, vem se constituindo na contribuição e interação de diferentes culturas. O surgimento do zero no mundo ocidental, sob influência de concepções hindus a respeito da vacuidade, é um exemplo clássico. Podemos citar outros como o conceito de matrizes sob influência chinesa ou a álgebra pelo mundo árabe, anteriormente ao Renascimento na Europa. Em todos os casos, nota-se um aspecto sociocultural”, exemplifica.
No entanto, Claudia lamenta que, apesar de todo esse contexto que envolve culturas e modos de viver, ainda há quem considere que ensinar Matemática se reduz a cálculos e fórmulas. “Na prática, a Matemática se constitui na relação do homem com o mundo, quer seja em atividades cotidianas ou na necessidade de compreender realidades”, afirma.
Assim, é possível entender que confeccionar um cesto trançado envolve atividades de produção, organização e difusão de saberes com elementos caros para o componente curricular como formas, padrões, regularidades, grandezas e medidas.
Ela cita que o estudo de probabilidade, muitas vezes associado à cultura europeia com o cara e coroa, pode ter um significado mais consistente para os alunos por meio de uma brincadeira tupiniquim, realizada com grãos de milho.
Para jogar, duas ou mais pessoas recebem, cada uma, seis caroços de milho. Os grãos tem um lado queimado e outro não. Durante a jogada, os participantes colocam os caroços na mão, balançam e jogam no chão. Contam-se os caroços que ficaram com lado marcado (queimado) para cima de cada jogador. Quem ficou com menos caroços pintados, sai do jogo.
“É interessante que quando eu trabalhei essa atividade com alunos do Ensino Médio, sozinhos eles fizeram a correlação com o cara e coroa. Isso é ensinar Matemática: a possibilidade de apresentar conceitos e resoluções por diferentes perspectivas”, explica Cláudia.
A etnomatemática também pode colaborar com a valorização dos saberes e de territórios, o que fortalece a própria identidade dos alunos. “Um exemplo são as tranças. Existe um padrão geométrico e regularidades com potencial de serem explorados e isso pode se conectar com a própria comunidade do aluno. Então, por que não chamar alguém que trança cabelos para as aulas, valorizado essa atividade e pesquisando sobre ela?”, provoca Claudia.
O importante, para ela, é o professor entender que, se ele não sabe tudo sobre determinado jogo ou prática, ele pode se unir aos alunos para pesquisar. “Fazendo isso, ele forma um estudante que sabe sobre si próprio e que conhece e respeita o outro”, finaliza.
Fonte: Nova Escola