Judiciário
Ação de indenização por danos morais decorrentes de omissão de cuidados
Quando o pai que negligenciou cuidados precisa pagar indenização ao filho
Não são raros os casos de abandono, negligência e omissão nas relações entre pais e filhos, principalmente quando se fala em abandono paterno. A figura da “mãe solo” é exaltada como heroína e romantizada ao extremo, enquanto a omissão paterna é normalizada, como se o gênero atribuísse à mulher a responsabilidade de arcar sozinha com os encargos do poder familiar, enquanto que homem tem o direito de escolher ser pai ou não.
É imensurável o impacto que o vazio causado pelas omissões parentais pode causar na construção psicológica de uma criança ou adolescente, em datas como aniversários, dia dos pais, natal e afins as redes sociais transformam-se em verdadeiros expositores de felicidade, onde todos demonstram orgulhosamente o quanto ostentam amor entre os familiares. Vislumbra-se em meio a esse cenário diversas telas online que observam caladas todo afeto que é gratuitamente demonstrado por pais e filhos, em verdadeira moldura que evidencia tudo que não podem desfrutar, transformando-se em imensa tortura psicológica.
Na infância as crianças comumente associam a imagem paterna a um verdadeiro herói, o maior, mais forte e mais corajoso. Imaginemos a angústia de uma criança que foi privada dessa presença, que sem possuir condições de entender o contexto da omissão paterna tantas vezes procura em si falhas que justifiquem tal afastamento.
Inúmeros são os dilemas que permeiam a infância e a adolescência, a conversa franca e direta sobre limites, as reuniões escolares, os passeios nos fins de semana, as datas comemorativas, o primeiro conselho amoroso, os ensinamentos sobre a vida. Em tantos momentos a vítima é abandonado a própria sorte. Muitas genitoras louvavelmente buscam suprir tais omissões dentro de suas limitações, criam os filhos sendo pai e mãe, em um contexto de abdicações e sofrimentos que poderiam ser evitados ou ao menos amenizados se o agente assumisse as responsabilidades que lhe cabem em decorrência da paternidade.
Todas as incontáveis experiências traumáticas vividas pela vítima jamais serão supridas, mesmo quando se alcança a maioridade o que restam são magoas, dores e a certeza de que o tempo de convivência paterna que foi perdido é irrecuperável.
Independente da contribuição material, concernente a pensão alimentícia a eventuais obrigações impostas por força legal ou determinação judicial é importante destacar que a mera contribuição financeira, por via coercitiva sob o risco de prisão em caso de descumprimento, não é capaz de amenizar os impactos psicológicos do abandono. É impossível mensurar monetariamente quanto vale uma boa conversa, a companhia de um dia de lazer ou a sensação de acalento proporcionada pela companhia paterna. De forma que o frio depósito de valores em conta corrente jamais poderá ser considerado como plena e efetiva prestação de cuidados.
Quando ausente da figura paterna a criança coleciona mágoas, ausências e danos psicológicos decorrentes de um abandono injustificado oriundo daquele que socialmente somos condicionados a vislumbrar como o símbolo do amor, cuidado e proteção incondicionais. Todas essas expectativas são convertidas em insegurança e tristeza, cicatrizes irreparáveis de anos sem conseguir compreender as razões pelas quais aquele que tinha o dever legal/moral/ético de estar por perto optou por ignorar sua existência.
A relação de afeto entre pai e filhos corresponde a uma mescla de sentimentos e emoções. É a partir dela que serão criados os laços de afetividade, com base no amor. E o campo da análise da psique humana revela ainda mais: tal abandono causa danos irreparáveis na construção da personalidade do indivíduo.
a) Da configuração do dano moral nas relações familiares
É plenamente possível que se fale na aplicação da normatização referente ao dano moral as relações intrafamiliares, uma vez que os textos legais que regulam a matéria (artigo 5º V e X da Constituição Federal e artigos 186 e 927 do Código Civil) tratam do tema de maneira ampla e irrestrita, vejamos:
Constituição Federal de 1988
Art. 5. V – E assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
A Partir da legislação em comento é possível verificar que inexistem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar ao Direito das Famílias.
É inquestionável o vínculo legal que une pais e filhos, sendo pacífico o entendimento de que dentre os deveres decorrente do poder familiar as obrigações de convívio, cuidado, criação e educação dos filhos, naturalmente envolvem a necessária transmissão de atenção e acompanhamento do desenvolvimento sócio psicológico.
Os genitores ou adotantes responsabilizam-se pela manutenção material dos filhos, de maneira que o descumprimento desse dever sem causa justificada possibilita o pedido de prisão civil do devedor como forma de coerção. Nesse sentido, a reparação civil por omissão de cuidados surge como mais um instrumento capaz de tutelar os direitos de crianças e adolescentes, não sendo vislumbrada apenas como uma forma de reparação à vítima, mas também uma maneira de dissuadir a prática de comportamentos análogos.
Quando se fala em afeto como elemento fundante das relações familiares é importante destacar sua relação direta com a preservação da dignidade humana. Isso porque, a dignidade, em sentido amplo, deve ser considerada para muito além das condições básicas de sobrevivência do indivíduo. Em um Estado Democrático de Direito os direitos de personalidade devem assumir papel importante para garantir a preservação integral das garantias individuais. Nesse viés, são relevantes os dizeres de Rolf Madaleno:
É possível compreender a importância do afeto na formação dos vínculos familiares, especialmente diante do texto constitucional em seu artigo 1º, inciso III, com a cláusula geral de tutela da personalidade, onde a dignidade humana é considerada valor fundamental da República. (MADALENO, Rolf. Direito de Família. Livro Eletrônico. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.54)
A responsabilidade civil subjetiva tem como fundamento uma ação, ou omissão, que resulta em danos ou prejuízo a terceiros e está associada, entre outras situações, a negligência com que o agente pratica determinado ato, ou deixa de fazê-lo, quando seria sua incumbência.Essa prática precisa ser juridicamente relevante para que seja capaz de movimentar a máquina judiciária, não podendo ser o caso de aplicação de eventuais excludentes de culpabilidade.
Dentro desse contexto, seja por meio da concepção ou adoção os genitores assumem obrigações jurídicas com relação a criação dos filhos, que atualmente são vislumbradas para muito além do mínimo existencial. Além de moradia, alimentação e vestimentas a criança ou adolescente precisa de atenção, cuidado, presença, validação de seus sentimentos e desejos, precisar ter na figura dos genitores um verdadeiro porto seguro, onde se sente acolhido e amado.
Sob esse aspecto, é importante destacar que dever de cuidado vem assumindo grande protagonismo no que tange a visão jurídica das relações parentais, porque se apresenta como fator determinante para a formação psicológica. Uma criança ou adolescente que cresce sob uma estrutura familiar conturbada, sem receber os cuidados e atenções necessários ao seu pleno desenvolvimento possui maior tendência a se tornar um adulto com dificuldades no convívio social, o que não é do interesse do Estado.
Nesse sentido, cita-se, o estudo do piscanalista Winnicott, relativo à formação da criança:
[…]do lado psicológico, um bebê privado de algumas coisas correntes, mas necessárias, como um contato afetivo, está voltado, até certo ponto, a perturbações no seu desenvolvimento emocional que se revelarão através de dificuldades pessoais, à medida que crescer. Por outras palavras: a medida que a criança cresce e transita de fase para fase do complexo de desenvolvimento interno, até seguir finalmente uma capacidade de relacionação, os pais poderão verificar que a sua boa assistência constitui um ingrediente essencial. (WINNICOTT, D.W. A criança e o seu mundo. 6ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008).
Essa percepção do cuidado como um valor jurídico relevante foi incorporada em nosso ordenamento jurídico de forma implícita pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988 quando se refere a convivência familiar, que por evidente precisa ser uma convivência saudável, produtiva, apta a transmitir valores e regras de conduta, validando lições éticas e morais:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O artigo em questão estabelece o direito a convivência familiar como um direito fundamental, no intuito de assegurar que a criança ou adolescente tenham condições de alcançar o desenvolvimento pleno em todos os aspectos.
Adiante, o artigo 229 da Carta Magna também estabelece de forma cristalina quem são os sujeitos responsáveis por proporcionar tais condições:
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
O dever de cuidado, portanto, deve ser vislumbrado como uma imposição legal, tal qual a subsistência material do infante, devendo se manifestar no cotidiano, na forma de assistência mutua, que está para muito além da mera liberdade individual de amar ou não, diz respeito a uma imposição constitucional de solidariedade.
O artigo 229 da Constituição Federal de 1988 consagrada, de uma vez por todas, a ideia de que o fim da sociedade conjugal não põe fim a parentalidade. Fala-se “os pais têm o dever” sem nenhuma ressalva quanto ao estado civil destes ou qualquer outra circunstância. A Carta Magna estabelece pura e simplesmente que a ambos cabe a assistência, criação e educação dos filhos menores.
Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa diretamente no enfraquecimento de valores constitucionais destinados a proteção das crianças e adolescentes, considerando principalmente que a parte final do artigo 227 da Constituição Federal estabelece que eles devem ser colocados “a salvo de toda a forma de negligência”.
Nessa linha de raciocínio, é relevante a menção ao histórico e louvável RESP 1159242, onde é possível verificar que não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de geram ou adotam filhos:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido.
Em sua relatoria a Ministra Nancy Andrighi brilhantemente ressaltou que atualmente as normas constitucionais e infraconstitucionais têm sido vislumbradas em sua máxima amplitude para que alcancem o objetivo protetivo dos indivíduos em desenvolvimento, tamanha a importância dessa fase para a construção da estrutura psicológica do futuro adulto. Isso porque, em âmbito científico é possível constatar o que empiricamente já era percebido: o cuidado é um elemento essencial durante a formação. No julgado em questão foi proferida a expressão que mais tarde serviria de embasamento para todo o raciocínio em comento: “amar é faculdade, cuidar é dever”. Destaca-se:
“O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. EM SUMA, AMAR É FACULDADE, CUIDAR É DEVER.”.
Quando referida imposição legal é descumprida ocorre uma ilicitude civil na forma de omissão, atingindo diretamente as imposições constitucionais e o bem jurídico tutelado que é o necessário dever de criação, companhia, educação e cuidado, por diversas vezes de forma irreversível.
b) Cabimento da indenização por dano moral
O dano moral possui três funções: a primeira é buscar de alguma maneira compensar o sofrimento, dissabor e angustia vivenciados pela vítima, a segunda consiste em verdadeira sanção imposta ao agressor, de forma pedagógica e dentro dos limites legais, para que sinta financeiramente o psicologicamente os efeitos da condenação, de forma que não volte a repetir o ato, e, por último, a terceira função pode ser expressa através do impacto social da sentença condenatória, que é capaz de emitir uma resposta para comportamentos lesivos e reprováveis socialmente, dissuadindo que práticas semelhantes venham a ser perpetradas por outras pessoas.
O Código Civil não trata de maneira específica sobre o cálculo do dano moral, em seu artigo 944 apenas estabelece de forma subjetiva que “a indenização mede-se pela extensão do dano”.
Em uma tentativa de tornar a questão mais tangível destaco algumas louváveis decisões que ganharam repercussão nacional, sendo objeto de reportagens e elogios por parte da sociedade, que convive diariamente com a omissão de cuidados parentais e os inúmeros impactos negativos causados tanto a genitora que se vê obrigada a assumir sozinha os encargos do poder familiar, quanto a criança, que sem nenhum ato justificável é privada da figura paterna.
Nesse sentido, ressalta-se o posicionamento do desembargador Evandro Lopes da Costa, da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que manteve a sentença de primeiro grau condenando um pai a indenizar os dois filhos em R$ 120 mil, por danos morais, em situação que os teria abandonado com 8 e 1 ano de idade.[1].
Adiante, a Justiça do estado de Tocantins acatou o pedido da Defensoria Pública do Estado e determinou que um pai pague R$ 50 mil de indenização para a filha de 19 anos, vítima de abandono afetivo, tendo sido considerado que “apenas pagar a pensão alimentícia para dar como quitada a obrigação da convivência familiar não é o suficiente. “[2].
Em histórico REsp1159242, ulteriormente mencionado, a ministra Nancy Andrighi da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça arbitrou em R$ 200 mil a indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos pais, sob o fundamento de que “amar é faculdade, cuidar é dever”.
Ante todo exposto, resta concluir que a omissão de cuidados tem tomado aspectos jurídicos muito relevantes, restando evidenciado, de uma vez por todas, que cuidado não diz respeito somente a aos recursos materiais, mas abrange o necessário dever de atenção, acompanhamento, convivência e presença, sob pena de ensejar ilicitude civil na forma de omissão, culminando em condenação a indenização por danos morais.
O afeto, no que tange ao Direito de Família, em sentido amplo, passa a ser vislumbrado como um parâmetro de interpretação das normas. É importante destacar, nesse sentido, a obrigação estatal de garantir aos indivíduos o direito à vida, não somente a vida como mero substantivo, mas vida de forma adjetivada: vida digna, vida feliz!
c) REFERÊNCIAS
CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3.º Edição. São Paulo: Atlas, 2017.
CHAVES, Cristiano Chaves de; ROSA, Conrado Paulino da. Teoria Geral do Afeto. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Livro Eletrônico. 4º Ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2016.
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Famílias. 7ª. Edição. São Paulo: Atlas, 2015.
MADALENO, Rolf. Direito de Família. Livro Eletrônico. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.54.
WINNICOTT, D.W. A criança e o seu mundo. 6ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008
[1] Fonte: TJMG – Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/paiecondenado-por-abandono-afetivo-de-filhos.htm#.YG-KTehKjIU >.
[2] Fonte IBDFAN: Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/7236/Pai+%C3%A9+condenado+a+indenizar+filha+por+abandono+afetivo
Chayane Beatriz Campos Coura – Advogada (OAB/MT 29559), graduada em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pelo Instituto Pró Jurídico Democrático (IPROJUDE).