Judiciário
Tudo o que você precisa saber sobre o Acordo de Não Persecução Penal – ANPP
Da exigência de confissão ao juiz das garantias: análise legislativa e jurisprudencial
O acordo de não persecução penal é mais uma espécie de medida despenalizadora que vem para ampliar a justiça negociada no Processo Penal. Prevista no art. 28-A, CPP, por adição da lei anti-crime (oficializando na lei o que já vinho sendo praticado pelo MP através de resoluções), trata-se de um acordo firmado entre investigado e Ministério Público para que, sob algumas condições, a denúncia deixe de ser oferecida, em moldes similares aos já utilizados na transação penal.
A lei determina que, não sendo caso de arquivamento e havendo a confissão, tratando-se de crimes sem violência ou grave ameaça (à pessoa) com pena mínima inferior a 4 anos, o MP poderá propor o acordo desde que cumulativa ou alternadamente o investigado:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
A prestação de serviço à comunidade, disposta no inciso III, funciona basicamente como uma pena restritiva de direitos, usando, inclusive, as regras desta (art. 46, CP). O quantum a ser diminuído deverá ser fundamentado sempre que não for usada a fração mais benéfica ao acusado e, apesar de tratar-se de medida despenalizadora, a execução ficará a cargo do juiz da execução (da mesma forma que ocorre com apenados). Quanto ao disposto no inciso IV, diferentemente do que comumente ocorre, nesse caso o legislador não colocou a vítima como a beneficiária da prestação pecuniária – talvez pela exigência de reparação do dano. No que diz respeito as condições citadas no inciso V, tratariam-se de medidas similares àquelas utilizadas na suspensão condicional do processo, como proibição de frequentar determinados lugares, etc.
Para averiguar se a pena mínima realmente é inferior a 4 anos, devem ser consideradas as causas de diminuição e aumento de pena (aquelas impostas na terceira fase da dosimetria da pena). O legislador não indiciou se deveriam ser consideradas as frações mínimas ou máximas de cada causa. Na súmula 623, o STF decidiu que nos casos de suspensão condicional do processo (que também é pautada na pena mínima cominada ao tipo penal) deve ser utilizada a fração mais benéfica ao réu, o que pode servir de precedente para que o mesmo ocorra nos casos de acordo de não persecução penal. Sendo caso de concurso de crimes, deve-se somar as penas mínimas para ver se não rompem os 4 anos (devendo ter especial atenção aos casos de exasperação). A recentíssima jurisprudência tem caminhado no sentido de vedar o ANPP para o caso do vulgo “tráfico privilegiado” (art. 33, § 4º, Lei 11.343/06), por crer que trata-se de uma causa minorante subjetiva, carecendo de aprofundada análise para que seja reconhecida.
O disposto no artigo não se aplica as seguintes hipóteses:
I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;
II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;
III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e
IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
Assim como o acordo não deve ser proposto nos casos em que sejam cabíveis o arquivamento, também não deve ser proposto nas situações em que forem cabíveis a transação penal, por tratar-se de instituto despenalizador mais favorável ao investigado. A reincidência e o comportamento delitivo constante também vedam o acesso ao acordo, exceto se insignificantes. Apesar de tão pouco tempo de vigência, já há um embate doutrinário acerca do conceito de “insignificante”, para uma corrente seriam aqueles delitos abraçados pelo princípio da insignificância (o que não faz muito sentido, já que esses delitos não seriam sequer puníveis), para outra, seriam aqueles delitos de competência do juizado especial criminal (que se fosse o caso, teria sido muito mais fácil ter escrito dessa maneira). O legislador também limitou que cada pessoa possa ser beneficiada no máximo uma vez a cada cinco anos por algum dos institutos despenalizadores, sob pena de legitimar a reincidência.
Outra restrição foi em relação aos crimes relacionados à violência doméstica ou familiar, bem como aqueles praticados contra a mulher em razão de gênero. O legislador adicionou, ao final do inciso, a expressão “em favor do agressor”, proibindo que o acordo seja oferecido apenas em relação a este. Ou seja, nos casos de violência doméstica em que a mulher, na condição de vítima, cometer algum crime abarcado pelas condições do instituto supra, não há qualquer óbice para que sejam beneficiadas pelo acordo.
Para homologação do acordo é necessária uma audiência para confirmar a voluntariedade do investigado em aceitar o acordo, averiguando, dessa forma, se o investigado não está sendo coagido a aceitá-lo. O juiz, julgando que o acordo é insuficiente ou abusivo, deve devolvê-lo ao MP para que este apresente um mais adequado (o juiz não pode alterá-lo por conta própria, nem de ofício nem por provocação, por falta de disposição legal). Julgando que o acordo não sofreu a adequação necessária ou que não estejam preenchidos os requisitos legais, o juiz também pode recusá-lo (decisão que pode ser atacada por Recurso em Sentido Estrito), situação na qual os autos serão devolvidos ao MP para complementação das investigações ou oferecimento da denúncia.
Assim como na celebração do acordo, no caso do seu descumprimento, a vítima deve ser intimada, já que será ouvida na futura ação. Ainda quanto ao descumprimento, sendo o caso, o MP deve comunicar ao juízo para reincidi-lo e logo após deve oferecer a denúncia. Insta destacar que, com a homologação judicial do acordo, ocorre a suspensão da contagem do prazo prescricional enquanto não cumprido ou reincidido (art. 116, IV, CP). Seu descumprimento pode ainda motivar na não oferta da suspensão condicional do processo, o que abre um precedente perigoso, como será exposto adiante.
A celebração e o cumprimento do acordo não constarão na certidão de antecedentes criminais (constará apenas na folha de antecedentes para que possa ser observado se já não houve outra medida despenalizadora nos últimos cinco anos). Cumprido o acordo integralmente, ocorre a extinção da punibilidade, vedando que o agente possa responder novamente por esse delito. Se o MP se recusar a propor o acordo, deve ser feito requerimento ao seu conselho superior, ou seja, recorre-se dentro do próprio MP, o que não impede que se impetre um Habeas Corpus ou Mandado de Segurança. É necessária atenção, porém, quanto à decisão da Primeira Turma do STF em abril deste ano, que decidiu que a proposta de acordo de não persecução penal não é direito subjetivo do réu, mesmo se preenchidos os requisitos legais, de modo que o MP pode, fundamentadamente, deixar de propor o acordo.
Sabendo que mesmo que preenchidos os requisitos o MP pode não propor o acordo, como fica a situação do investigado que confessa o crime exclusivamente com este fim? E o que acontece com essa confissão se o acordo for revogado futuramente?
Também adicionado pela lei anti-crime, o art. 3-C, em seu parágrafo terceiro, dispõe sobre a separação física dos autos, determinando que os autos da investigação não se vincularão aos autos do processo, logo, o juiz que sentenciará não verá menção ao acordo. Porém, a legislação que dispõe sobre o juiz das garantias está com vigência suspensa pelo STF, o que está acarretando um problema que não foi previsto pelo legislador e que carecerá de controle de constitucionalidade. Apesar de ter esse cuidado com o juiz das garantias, o mesmo não foi feito com o juiz do processo, que saberá que foi firmado o acordo nas situações em que a negativa da suspensão condicional do processo for arrazoada com o descumprimento prévio do acordo de não persecução penal.
Ao meu ver, a exigência da confissão é a grande polêmica – e talvez o grande erro – do instituto. Além do que fora dito acima, ainda há outro problema: em que momento a confissão pode ser feita? Exigir-se-ia que fosse realizada durante o inquérito ou bastaria fazer uma confissão formal no momento do acordo? Como o legislador não deixou a claro e, tratando-se de matéria penal, é vedada – ou ao menos deveria ser – a interpretação in malam partem, compreendo que a confissão possa ocorrer apenas no momento do acordo.
Na última semana, conversando com um competente colega, foi-me descrita outra polêmica situação. Um caso de homicídio culposo no trânsito, tipo penal apto a ensejar o ora discutido instituto, mesmo que fosse celebrado o acordo, estabelecendo, que seja, 20 salários mínimos, como a confissão teria sido feita, o prejuízo na esfera cível, à título indenizatório, poderia ser absurdamente maior.
Outra polêmica diz respeito a intertemporalidade do instituto. Se a investigação for instaurada após a Lei Anticrime, o acordo deve ser oferecido mesmo que o crime tenha sido praticado antes da lei. Quando a ação penal já estivesse em curso quando a lei entrou em vigor, para uma corrente, não mais seria possível o oferecimento do acordo, para outra, seria permitido desde que fosse proposto em momento anterior ao da publicação da sentença condenatória. A portaria conjunta nº 20/PR-TJMG, embora revogada recentemente – o que por si só não impede o pedido – dispunha sobre os termos para a propositura do ANPP, após o oferecimento da denúncia. Por ser um instituto tão recente, a jurisprudência ainda está a ser construída, mas a título exemplificativo, ao menos na comarca que atuo (Juiz de Fora – MG), ANPP’s propostos após a denúncia, porém antes da sentença, estão sim acontecendo.
O instituto soma-se à transação penal, à suspensão condicional do processo e à colaboração premiada no rol de importantes ferramentas da justiça negociada no Processo Penal. Além de auxiliar no descongestionamento do já saturado judiciário, o legislador, na contramão dos crescentes movimentos punitivistas, buscou alternativas menos invasivas e mais apropriadas para crimes de menor potencial ofensivo, praticados por agentes sem histórico de reiteração.
Ainda tem alguma dúvida quanto ao ANPP ou gostaria de saber se é aplicável ao seu caso, mesmo que a denúncia já tenha sido oferecida?
AUTOR
Arthur Navarro – Advogado e Consultor CriminalistaGraduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF OAB-MG nº 209.379 Associado do Escritório Israel Lima Advogados Membro da Comissão de Direito Penal e Assuntos Prisionais OAB/JF Membro do Internacional Center for Criminal Studies (ICCS) Advogado na Seara Criminal