ENTRETENIMENTO
As antigas culturas indígenas são mesmo um modelo ideal de sociedade?
Violência brutal de tribos de vários continentes desmentem a narrativa generalizante de que os povos ancestrais levavam vidas idílicas
Violência brutal de tribos de vários continentes desmentem a narrativa generalizante de que os povos ancestrais levavam vidas idílicas
Érelativamente comum ouvir ou ler declarações de que as antigas culturas indígenas seriam o modelo ideal de sociedade, porque, idilicamente, viveriam de modo harmônico e natural, supostamente sem leis nem impostos, sem pressões econômicas porque tudo seria compartilhado, sem preocupações com o futuro porque todos viveriam um dia depois do outro, sem interferência de governos porque os caciques seriam apenas sábios conselheiros, sem opressão religiosa porque os rituais seriam inofensivos cultos à mãe natureza.
Quem espalha esse tipo de generalização também espalha, via de regra, mais algumas narrativas complementares, como a de que os missionários católicos teriam exterminado brutalmente a vida maravilhosa que os índios levavam antes da sua chegada.
Até que ponto essas narrativas refletem a realidade documentada por pesquisadores, arqueólogos e historiadores?
São contundentes os registros de rituais tão sangrentos e violentos praticados pelos astecas, por exemplo, que os próprios conquistadores espanhóis se chocavam com a sua desumanidade. Aos que alegam que esses relatos foram exagerados pelos colonizadores, é o caso de apresentar testemunhos arqueológicos como o dos 650 crânios encontrados em 2017 nos arredores do Templo Maior de Tenochtitlan, um dos principais da antiga capital asteca.
Segundo os pesquisadores, trata-se de restos mortais de centenas de guerreiros feitos reféns e depois executados; seus crânios foram usados para construir uma torre de ossos humanos que é apenas um dos muitos registros históricos de rituais de morte comuns a diversas culturas mesoamericanas anteriores à chegada dos espanhóis ao México. Descobertas arqueológicas similares incluem crânios de mulheres e crianças, o que descarta a narrativa de que as ossadas decorressem de guerras. Os indícios são de extensos rituais em que centenas de pessoas, inclusive crianças e mulheres, eram sacrificadas aos nada meigos deuses astecas. O próprio Instituto Nacional de Antropologia e História, do México, estima que cerca de 75% das vítimas eram homens de 20 a 35 anos; 20% eram mulheres e 5% crianças.
Durante um dos rituais documentados, o sacerdote asteca abria o peito da vítima usando uma lâmina afiada e retirava o seu coração ainda pulsando. Em seguida, o sacerdote retirava a cabeça do corpo assassinado fazendo um corte entre duas vértebras. Depois de removidas a pele e a carne até que restassem somente os ossos do crânio, eram abertos buracos nas suas laterais para que os crânios fossem presos a estacas de madeira. Eram assim formadas autênticas torres de crânios humanos oferecidos às divindades insaciáveis – literalmente, porque, para essa cultura, os sacrifícios humanos eram imprescindíveis para manter os deuses vivos e preservar a existência do mundo.
Um dos deuses, aliás, era Huitzilopochtli, descrito como a “divindade canibal da guerra”: para os astecas, o sol só sairia no dia seguinte se Huitzilopochtli fosse alimentado com as entranhas de vítimas de sacrifícios rituais, pois isto o impediria de comer o sol. Em um dos templos chegava a existir uma estátua de Huitzilopochtli de boca aberta, pela qual era emitida uma voz medonha pedindo mais vítimas e declarando ter sede de sangue.
Crônicas de 1519 narram que Hernán Cortés ficou horrorizado a ponto de destruir ele próprio aquele ídolo a marretadas. Andrés de Tapia e Gonzalo de Umbria contaram 136.000 caveiras humanas em apenas um templo. Chegou-se a calcular que cerca de 100.000 vítimas eram sacrificadas por ano a Huitzilopochtli.
Se o simples conhecimento das características de Huitzilopochtli é capaz de despertar repulsa e horror até os nossos dias, é bom nos prepararmos bem antes de saber quem era a deusa-mãe de Huitzilopochtli: Coatlicoe, que correspondente, mais ou menos, à Pachamama dos incas.
Segundo o pesquisador Andrés Brito Galindo, doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Burgos e professor de Antropologia da Educação no Centro de Estudos Teológicos de Tenerife, ambas as instituições na Espanha, Coatlicoe é um ídolo de cuja cabeça saíam duas serpentes, com outras duas formando os braços e garras de ave de rapina constituindo os pés. A essa aberração em forma de ídolo os astecas sacrificavam mulheres grávidas, arrancando-lhes os fetos para dissecar a sua cabeça e fazer colarinhos de pequenos crânios para adornar a deusa-mãe. Representações posteriores incluem nesses colares corações, mãos e caveiras.
O apontamento acrítico de um suposto modelo ideal de sociedade entre os povos ancestrais não cai por terra somente sob o peso dos seus ritos religiosos sangrentos: também cai por terra sob as mentiras a respeito da alegada natureza pacifista desses povos idealizados como cultura homogênea apesar de diversa.
Os mesmos astecas mantinham vultosos exércitos para submeter cerca de 300 outras tribos da região, mas a realidade sangrenta não se restringia ao território mexicano. A ferocidade das tribos da América do Norte não era menor, nem entre elas próprias, nem com os colonizadores.
Mesmo na alegadamente “pacífica” América do Sul não faltam registros de guerras e raptos entre povos de tribos diferentes. Recentemente, aliás, foi notícia no Brasil a tradução das únicas cartas de que se tem notícia escritas por um indígena em tupi antigo durante o período colonial da história do país. Na troca de correspondências, o indígena católico Felipe Camarão pedia a seus parentes Pedro Poti e Antônio Paraopeba, indígenas protestantes aliados dos invasores holandeses, que voltassem para o lado português. Camarão afirmava que os indígenas precisavam se unir, pois eram do mesmo sangue e não podiam se matar daquela maneira.
Os parentes, porém, não se comoveram. Em 16 de julho de 1645, o padre André de Soveral e 70 fiéis católicos, incluindo indígenas, foram assassinados de modo bárbaro por 200 soldados holandeses acompanhados pelo grupo de índios potiguares que tinham influenciado. O martírio foi sofrido em plena Santa Missa, na Capela de Nossa Senhora das Candeias, em Canguaretama, litoral do atual Rio Grande do Norte.
A busca pelo “modelo ideal de sociedade” entre os povos antigos não pode eludir o fato incontestável da escravidão.
Esse horror, que muitas narrativas também atribuem exclusivamente aos exploradores europeus durante a era colonialista, era comum entre culturas africanas que não apenas a impunham umas às outras como, frequentemente, participavam dos lucros do tráfico humano vendendo escravos de seu próprio povo aos criminosos europeus que os revendiam às Américas.
A cumplicidade histórica de elites africanas com o tráfico de escravos negros para as Américas, sobretudo para o Brasil, é hoje reconhecido até por descendentes de escravos que buscam reconciliar-se com as suas origens.
É o caso de Zulu Araújo, que, aos 63 anos, em 2016, foi um dos 150 brasileiros convidados pela produtora Cine Group a identificar as suas origens mediante um exame de DNA. Após descobrir que é descendente do povo tikar, de Camarões, Zulu viajou ao país para conhecer a terra de seus antepassados. Lá conheceu o rei tribal, “homem alto e forte de 56 anos, casado com 20 mulheres e pai de mais de 40 filhos“, conforme matéria da BBC sobre o relato de Zulu. Ainda segundo a mesma matéria da BBC, o brasileiro perguntou ao rei africano “por que eles tinham permitido ou participado da venda dos meus ancestrais para o Brasil“.
E Zulu prossegue o depoimento: “O tradutor conferiu duas vezes se eu queria mesmo fazer aquela pergunta e disse que o assunto era muito sensível. Eu insisti. Ficou um silêncio total na sala. Então o rei cochichou no ouvido de um conselheiro, que me disse que ele pedia desculpas, mas que o assunto era muito delicado e só poderia me responder no dia seguinte. O tema da escravidão é um tabu no continente africano, porque é evidente que houve um conluio da elite africana com a europeia para que o processo durasse tanto tempo e alcançasse tanta gente. No dia seguinte, o rei finalmente me respondeu. Ele pediu desculpas e disse que foi melhor terem nos vendido, caso contrário todos teríamos sido mortos. E disse que, por termos sobrevivido, nós, da diáspora, agora poderíamos ajudá-los. Disse ainda que me adotaria como seu primeiro filho, o que me daria o direito a regalias e o acesso a bens materiais“.
Os próprios cristãos brancos escravizados na África eram muito mais numerosos do que se acreditava até hoje, conforme os estudos do professor Robert Davis, da Ohio State University. A este respeito confira os seguintes artigos sugeridos:
Aparentemente, as narrativas sobre o “modelo ideal de sociedade” pularam diversos capítulos da História real da humanidade.