Judiciário
As lições das decisões do TSE em casos de fake news nas eleições
Nova visão dos termos abuso e uso indevido é condizente com as ferramentas digitais que influenciam o debate político
Nova visão dos termos abuso e uso indevido é condizente com as ferramentas digitais que influenciam o debate político
O direito eleitoral possui características próprias, pode-se afirmar que é um ramo do direito em constante transformação, em intensidade muito superior às demais áreas jurídicas. Estamos acostumados a presenciar a cada ano ímpar discussões sobre reformas eleitorais a serem implementadas e testadas no pleito vindouro. Em 2021 não foi diferente. O Congresso Nacional se debruçou sobre diversos projetos de lei e propostas de emenda à Constituição (PEC), porém as mudanças para a eleição de 2022 não foram tão profundas como anunciavam os debates prévios.
Realmente, vivenciamos em 2020 uma eleição atípica, realizada em plena pandemia, com inegáveis restrições de comunicação e com atos de campanha limitados pela Covid-19. Algumas mudanças na lei podem ser destacadas para a eleição de 2022 que, provavelmente, ainda se adaptará às ameaças e restrições da Covid e suas variantes.
O legislador, diante da falência do sistema partidário hipertrofiado, inovou com a autorização da formação de federações partidárias, que consistem na reunião de dois ou mais partidos para atuação conjunta pelo período de quatro anos, com registro e estatutos próprios registrados no TSE. A federação partidária é uma alternativa posta ao fim das coligações proporcionais, visando a união de legendas para superar as adversidades da cláusula de barreira. Ressuscita a verticalização das alianças nacionais e exige a manutenção da junção das greis durante o exercício da legislatura. Uma novidade que ainda não tem exemplo na vida prática brasileira.
Importante destacar que, visando reduzir os custos de campanha, dentre outras alterações, o legislador optou por diminuir o período eleitoral para 45 dias[1], ao invés dos exaustivos e onerosos três meses, com a nova redação do artigo 36 da Lei das Eleições, a partir das eleições de 2016. Portanto, a situação atual aponta para um lapso temporal de aproximadamente um mês e meio entre a data final do pedido de registro e a data da eleição.
O encurtamento do processo eleitoral exige dos seus atores maior rapidez na tomada de decisões e intensidade no compartilhamento de suas propostas. Os meios tradicionais de divulgação das propostas como panfletos, mala direta, faixas e placas vêm sendo substituídos pelos meios digitais, impulsionados pela internet, redes sociais, aplicativos e ferramentas tecnológicas, que conquistam o mundo velozmente. Sem dúvida, a propaganda eleitoral no rádio e televisão ainda tem importância para a comunicação do candidato, mas nem todos têm acesso aos grandes veículos de comunicação.
A internet democratizou e universalizou a informação, mas, por outro lado, deu espaço à desinformação. O que antigamente poderia ser apenas uma fofoca de botequim hoje chega aos celulares de milhares de pessoas em instantes. A magnitude e o alcance dos novos instrumentos passaram a ser observados e vigiados.
Em um Estado Democrático de Direito, o primeiro pensamento é evitar a censura e deixar os debates tomarem as redes com as opiniões divergentes. No entanto, o tempo demonstrou que o controle e a fiscalização devem voltar os olhos para a internet. Não pode haver território sem lei no processo eleitoral. A lisura do pleito é princípio indissociável da democracia. A veracidade das informações divulgadas, a paridade de armas entre os concorrentes na disputa, a clareza das regras da eleição são balizas que devem limitar a ação dos partidos políticos e candidatos.
Em 2022, a aposta para protagonizar os debates nos Tribunais Eleitorais é a digitalização das campanhas e o impacto no equilíbrio da disputa e integridade da eleição. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já fez o “spoiler” para o enredo de 2022, ao julgar dois casos similares com desfechos distintos, em que foram fixadas premissas e teses que serão observadas no futuro.
As ações de investigação judicial eleitoral propostas em face do presidente Jair Bolsonaro (PL) e o recurso ordinário eleitoral envolvendo o deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR) são leading cases relativos ao exame da influência dos meios digitais no direito eleitoral, em especial para uma primeira fixação de parâmetros orientadores à configuração do abuso ou uso indevido das ferramentas tecnológicas[2].
Os tipos do abuso de poder econômico ou político e o uso indevido dos meios de comunicação estão presentes no ordenamento jurídico pátrio há décadas, fixados na Lei Complementar 64/1990, com conceitos delineados pela jurisprudência ao longo do tempo. A lei não exaure as hipóteses de abuso de poder ou de uso indevido dos meios de comunicação, cujas definições são abertas, dependendo da análise do caso concreto para se confirmar a ocorrência do ato ilícito capaz de influir na desigualdade do pleito ou na lisura das eleições.
Apesar da inexistência de rol exemplificativo dos casos que possam caracterizar o abuso de poder, a legislação exige que a proteção aos bens jurídicos da lisura, normalidade das eleições e igualdade da disputa venha sempre acompanhada da demonstração da gravidade dos fatos.[3] A gravidade é aferida, hipótese por hipótese, levando em consideração algumas circunstâncias como: a magnitude do ato praticado, seu alcance perante o eleitorado, a reprovabilidade da conduta, a eleição que está sendo disputada, dentre outras.
Nos dois precedentes acima destacados, com dois candidatos eleitos – um presidente da República e outro deputado estadual do Paraná –, houve fixação de premissas e teses coincidentes, com resultados distintos exatamente porque, no processo do presidente da República, não restou demonstrada a gravidade das circunstâncias que poderiam ensejar a procedência do pedido. Por outro lado, no caso do deputado estadual, restou configurada gravidade suficiente a interferir na lisura do pleito, ocasionando a cassação do mandato do parlamentar.
As lições extraídas das decisões do TSE para as próximas eleições são alvissareiras e apontam para uma nova visão dos termos abuso e uso indevido, plenamente condizente com a vida moderna, cercada de ferramentas e inovações tecnológicas, as quais possuem inequívoca influência no debate político-eleitoral.
O primeiro ponto consignado pelo TSE diz respeito ao enquadramento da internet, aplicativos de mensagens instantâneas e redes sociais como “veículos ou meios de comunicação”, na forma do previsto no art. 22 da Lei Complementar 64/1990, na medida em que são ferramentas abertas ao eleitor, cada vez mais utilizadas com amplo e direcionado alcance, além de velocidade superior aos meios tradicionais de comunicação.
O combate à desinformação e disseminação de fatos sabidamente inverídicos é o esteio da fundamentação que levou à cassação do deputado estadual, que utilizou as redes sociais para divulgar vídeo de ataque ao sistema eletrônico de votação propalando inverdades e falsas informações com o nítido propósito de se autopromover, com evidente desvio de finalidade, buscando interferir na lisura e legitimidade do pleito. A reprovabilidade da conduta e o alcance da mensagem inverídica divulgada, no afã de se promover como “paladino da justiça”, autorizaram a aplicação da sanção máxima de cassação prevista no direito eleitoral.
Em relação ao alcance e magnitude das ações envolvendo os meios digitais, a Justiça Eleitoral se debruçará sobre novos termos e métricas, próprias do ambiente de internet. No caso do deputado estadual, o TSE já dimensionou a gravidade da conduta com base na quantidade de visualizações, compartilhamentos e audiência online da transmissão do parlamentar[4]. Indubitavelmente, em processos futuros relacionados aos meios digitais e ferramentas tecnológicas, os operadores do direito se envolverão com as métricas típicas do direito digital para aferir a gravidade e magnitude dos fatos, a fim de verificar se houve o abuso ou uso indevido dos meios digitais.
No mais, os disparos em massa de mensagens contendo inverdades ou ataques a candidatos também serão alvo de investigações eleitorais, merecendo reprimenda dura como já alertou, em boa hora, o futuro presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, por configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação.
Além disso, a Justiça Eleitoral deverá estar atenta para eventuais aplicações tecnológicas que ainda irão surgir, uso de robôs ou perfis falsos, resgate ou recuperação das mensagens enviadas junto às plataformas digitais, participação dos influenciadores digitais em campanhas eleitorais, controle da monetização de determinados perfis, ferramentas, aplicativos ou afins. Enfim, são muitas novidades e possibilidades a serem enfrentadas pelo nosso sistema de justiça.
De fato, não há fórmula ideal ou receita única para combater o uso indevido dos meios digitais. Os primeiros passos vêm sendo adotados pela Justiça Eleitoral, desde a implantação pelo TSE do Programa de Combate à Desinformação, na gestão da ministra Rosa Weber, passando pelos termos de cooperação assinados com plataformas digitais, partidos políticos e organizações da sociedade civil e, principalmente, pela sinalização dos últimos julgados que indicam que o território da internet está submetido às regras do jogo democrático.