Judiciário
Estado democrático de Direito chega à defesa do consumidor
Decreto que reorganiza SNDC garante direitos aos acusados e deveres ao Estado
Decreto que reorganiza SNDC garante direitos aos acusados e deveres ao Estado
O tema do processo administrativo sancionador como concreção dos princípios e valores de um Estado de Direito vem sendo discutido há alguns anos pela moderna dogmática administrativista[1]. E isso é assim porque a imposição de penalidades pelo Estado depende do respeito a certas garantias aos acusados, especialmente a presunção de inocência e a ampla defesa. E o Decreto 10.887/21 – que reorganiza o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) – corresponde a chegada do Direito do Consumidor ao almejado e desejado Estado democrático de Direito.
E por que digo isso?
Ora, é simples. Porque o decreto, a partir do seu artigo 33A, dedica vários dispositivos destinados à disciplina da aplicação de sanções aos particulares, garantindo uma série de direitos aos acusados e deveres aos órgãos de Estado.
Sim, Procons realizam uma fundamental função pública de defesa dos consumidores, mas são órgãos de Estado, e, como tal, devem atuar em conformidade com a lei, a qual deve garantir direitos aos fornecedores acusados (no caso, de eventual infração ao Código de Defesa do Consumidor). Nessa relação entre Estado e particular, o vulnerável é o particular!
Parece evidente que no plano dogmático-jurídico não se está a tratar de uma relação estrita de consumo para fins de disciplinar a relação contratual (e ou indenizatória) entre consumidor e fornecedor, mas sim entre Administração Pública e particular (e portanto regulada pelo Direito Administrativo).
Com efeito, o processo administrativo sancionador é aquele que permite que o Estado (no caso, órgãos de defesa do consumidor) exerça seu poder de polícia e sancione condutas ilegais decorrentes de seu poder fiscalizador repressivo (no caso, violações de regras previstas no CDC).
Por isso, quatro princípios entram em cena, próprios da modalidade de um processo sancionador (o devido processo legal administrativo) e que devem ser respeitados pela autoridade de defesa do consumidor: o da legalidade, da culpabilidade, da razoabilidade e da proporcionalidade.[2]
Nessa esteira do reconhecimento da natureza sancionadora do processo de aplicação de multas no campo consumerista, há regras no decreto sobre como devem ser conduzidas Averiguações Preliminares por órgãos estatais por eventuais violações ao CDC – art. 33A –, regras sobre como consumidores podem apresentar reclamações aos órgãos de defesa (art. 34) – facilitando seu acesso à justiça –, e também como deve ser conduzida a acusação (art. 42), a instrução do processo administrativo sancionador, inclusive com a possibilidade de produção de provas – como é natural à ampla defesa e o devido processo (art. 44) – e também regras sobre a eventual condenação a penas (art. 46).
Alguns poderiam dizer que esse reconhecimento de certos deveres à Administração Pública enfraquecem a defesa do consumidor, pois um pequeno Procon de uma pequena municipalidade nada poderia fazer contra uma grande corporação, se tiver de cumprir com essas garantias constitucionais do Estado democrático de Direito.
Ora, mas essas são garantias que até o acusado de um crime tem! O Estado tem de provar a culpa do acusado e garantir a ampla defesa. Ademais, aquele raciocínio é simplório, pois uma grande corporação sempre estará sujeita ao órgão federal de defesa do consumidor, que tem suficiente poder de barganha para enfrentá-la, assim como Procons estaduais. Por isso, coerentemente, o decreto desenha e estabelece competência entre os órgãos de defesa do consumidor.
[1] OSÓRIO, Fabio Medina. Conceito de sanção administrativa, em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-administrativo-sancionador/sancao-administrativa-novos-paradigmas-29102020
[2] BINENBOJM, Gustavo. “Poder de polícia, ordenação, regulação”. Belo Horizonte: Editora Forum, 3a. ed, p. 111.
autor
LUCIANO BENETTI TIMM – Ex-secretário Nacional do Consumidor/MJSP. Professor de Direito e Economia da FGVSP e UNISINOS/RS. Doutor em Direito. Ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia