Judiciário
O advogado pode gravar depoimento de cliente em investigação
I – GRAVAÇÃO AMBIENTAL
A lição de Eugênio Pacelli (Curso de Processo Penal, 17ª edição, pág.345) ensinou que chama-se de gravação ambiental aquela realizada no meio ambiente, podendo ser clandestina, quando desconhecida por um ou por todos o interlocutores ou autorizada, quando com a ciência e concordância destes ou quando decorrente de ordem judicial.
É certo que as gravações clandestinas, em princípio, são ilegais, na medida e quando violarem o direito à privacidade e/ou à intimidade dos interlocutores, razão pela qual, como regra, configuram provas obtidas ilicitamente.
Para que seja válida a revelação da gravação feita por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro, é mister que esteja presente situação de relevância jurídica o que se pode chamar de justa causa, à luz do artigo 153 do Código Penal, que estabelece ser crime a divulgação de conteúdo de documento de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário, ou detentor, sem justa causa.
Como ainda esclareceu Eugênio Pacelli (obra citada, pág. 346), a justa causa diz respeito a uma motivação que possa validamente ser reconhecida pelo Direito.
Do julgamento do RE 402.717-8/PA, relator ministro Cézar Peluso, julgado em 2 de dezembro de 2008, tem-se a seguinte ementa:
“(….) é licita a prova consistente no teor de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo, nem de reserva de comunicação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou”.
Ainda no julgamento do RE 583.937/RJ, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da questão, afirmando a validade de gravação clandestina nas hipóteses em que o interlocutor esteja a defender interesse juridicamente relevante e legítimo, bem como em casos em que não haja reserva de sigilo de comunicações.
Esse julgamento é um leading case para os casos de gravação clandestina em investigações policiais ou pelo Ministério Público.
Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal ainda reconheceu a validade de uma gravação de conversa mantida entre agentes policiais e um preso, na qual ele atribuía a responsabilidade pela prática de um certo crime a determinada pessoa. As gravações foram admitidas ao fundamento de que o preso, por ter ciência da prática de um crime, teria o dever de depor sobre ele. Assim não poderia alegar direito à intimidade (STF – HC 69.818, JSTF 224/345, JSTF 174/352; HC 69.204-4/SP, DJU de 4 de setembro de 1992).
Pacificou-se nos Tribunais Superiores o entendimento de que a gravação ambiental feita por um dos interlocutores é válida como prova no processo penal, independentemente de prévia autorização judicial. Precedentes do STJ e do STF.
Assim se tem:
“1. Pacificou-se nos Tribunais Superiores o entendimento de que a gravação ambiental feita por um dos interlocutores é valida como prova no processo penal, independentemente de prévia autorização judicial. Precedentes do STJ e do STF (( HC 387.047/ES, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 06/04/2017, DJe 17/04/2017J).”
“É pacífico, neste Superior Tribunal e no Pretório Excelso, que a gravação ambiental, realizada por um dos interlocutores, com o objetivo de preservar-se diante de atuação desvirtuada da legalidade, prescinde de autorização judicial ( RHC 31.356/PI, Rel.Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 11/3/2014, DJe 24/3/2014).”
É mister ressaltar, ainda, que a Lei n. 9.296, de 24/7/1996, mesmo com as inovações trazidas pela Lei n. 13.964/2019, não dispôs sobre a necessidade de autorização judicial para a gravação de diálogo por um dos seus comunicadores.
Temos então três conceitos:
a) Interceptação Ambiental: técnica de investigação criminal em que terceira pessoa (policial) se vale de equipamentos adequados para captar, de maneira sub-reptícia e em tempo real, conversa entre dois ou mais interlocutores que se realiza em local específico, público ou privado;
b) Escuta Ambiental: técnica investigativa em que terceira pessoa (policial) se vale de equipamentos adequados para captar, em tempo real, conversa de dois ou mais interlocutores que se realiza em local específico, público ou privado, sendo que neste procedimento um dos interlocutores tem ciência dessa intervenção de terceiro;
c) Gravação Ambiental: ocorre quando um dos interlocutores, de maneira clandestina, vale dizer, sem o conhecimento dos demais, se vale de equipamento adequado para captar comunicação que se realiza entre presentes em local específico.
Percebe-se que neste caso, diferentemente das outras hipóteses, o registro na comunicação é feito diretamente por um dos interlocutores, independentemente da intervenção de terceiros.
Quanto a gravação ambiental dir-se-á que (art. 10-A, § 1º, da Lei 9.296/96) não precisa observar os requisitos do artigo 8º-A, da Lei 9.296/96. Em tais casos, a validade da prova deverá ser analisada pelo juiz à luz do caso concreto.
II – HC 662.690
Discute-se se o advogado que grava depoimento do cliente ao MP, mesmo sem autorização comete crime.
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o trancamento de investigação instaurada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) contra duas advogadas que gravaram, sem autorização, o depoimento de um cliente no procedimento que apura a morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O colegiado entendeu que não houve ilegalidade na conduta das profissionais, como nos informou o site de noticias do STJ.
Com a decisão, a Quinta Turma anulou todos os atos de investigação e os atos judiciais requeridos no procedimento, inclusive a operação de busca e apreensão realizada nas residências e no escritório das advogadas, às quais deverão ser restituídos os bens ilegalmente apreendidos.
Para o relator do caso, ministro Joel Ilan Paciornik, houve abuso de autoridade na instauração do procedimento investigativo do MPRJ contra as advogadas, pois, embora a gravação não autorizada não seja “ética e moralmente louvável”, a sua realização, no caso, não foi ilegal, muito menos criminosa.
Para o ministro, ainda que a autoria da gravação tenha sido confirmada posteriormente, o sigilo tutelado pela norma do artigo 10 da Lei 9.296/1996 se refere apenas às gravações obtidas a partir de interceptações telefônicas judicialmente autorizadas ou, ainda, à realização de interceptação telefônica ou de escuta ambiental sem a ordem judicial legitimadora.
“A realização da gravação, nas circunstâncias em que levada a efeito – em oitiva formal de assistido seu, oficial e notoriamente registrada em sistema audiovisual pela autoridade administrativa responsável pelo ato –, é legalmente permitida, independentemente de prévia autorização da autoridade incumbida da presidência do ato, nos explícitos termos do artigo 367, parágrafo 6º, do Código de Processo Civil, diploma jurídico de aplicação supletiva aos procedimentos administrativos em geral”, afirmou.
O relator ponderou ainda que, por força da aplicação analógica do parágrafo 5º do mesmo artigo, a gravação realizada pelo Ministério Público já deveria ter sido integralmente disponibilizada às advogadas. Portanto, observou, também por esse motivo, não haveria sentido lógico algum em sua responsabilização.
A matéria foi discutida no HC 662.690.
III – A NECESSÁRIA INVESTIGAÇÃO COM RELAÇÃO AO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE
Será necessário investigar por abuso de autoridade os agentes do Parquet que abriram essa investigação, à luz do que determina o artigo 30 da Lei de Crimes de Abuso de Autoridade, que assim determina:
Artigo 27 — Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada”.
Investigação sem indícios de crime é abuso de autoridade.
Henrique Hoffmann, Adriano Sousa Costa e Eduardo Fontes (investigação sem indícios é abuso de autoridade) nos disseram que não basta o dolo de praticar a conduta típica de abuso, sendo preciso o animus abutendi. O agente público deve agir com a finalidade específica (elemento subjetivo especial) de, alternativamente (artigo 1º, § 1º): a) prejudicar outrem; b) beneficiar a si mesmo ou a terceiro; c) por mero capricho; e d) por satisfação pessoal.
Aduziram ainda eles que “a instauração de inquérito policial exige a verossimilhança do relato do crime e de seu autor, e ao menos a possibilidade da colheita de indícios iniciais de materialidade e autoria. São necessários indícios (ainda que mínimos), entendidos não como prova indireta, mas como elemento de convicção semipleno, de menor valor persuasivo, de percepção vertical rasa e cognição sumária.”
Considera-se que, havendo dúvidas sobre a existência de indícios mínimos de materialidade e autoria, não se deve instaurar o inquérito policial. E se for incerta a presença de indícios veementes do crime e de seu autor, o indiciamento e a acusação não devem ser feitas.
AUTOR