Judiciário
O denunciante: esboço de uma nova teoria em alusão à voz do dever
Denunciar a corrupção pode ganhar contornos nefastos. Quem suportaria enfrentar sofrimento munido do postulado do dever em favor de Estado que, em aparente cinismo, desprotege o denunciante?
Há aproximadamente 70 milênios, o homem, por via da Revolução Cognitiva, adquiriu a capacidade de comunicar, convencendo e defendendo seus iguais de situações perigosas — talvez de um leão, com inscrições cuneiformes e desenhos em cavernas.[1] A capacidade de comunicação, com espasmos de honestidade, já viveu dias mais efusivos e marcou época. Entretanto, um quê fetichizado do passado, temperado com a podridão moral e danações sociais de monta, torna-se redivivo no presente, ora para o bem ora para o mal, aqui, no fio condutor da corrupção caricata que grassa aos borbotões, acolá, a favorecer paladinos em arapongagens judiciais, numa prova evidente de que a comunicação se “aperfeiçoa” através do tempo.
Insuspeito de exageros, antes de se apressar a louvar estigmas à denunciação, é preciso ceder aos fatos, recrutando seus valores. Elucida-se, inclusive repristinando argumentos da vida cotidiana, no reforço do entendimento, uma situação pitoresca em final de semana de passeio de carro em família. Ei-la:
O papai (pé de chumbo) está no volante de um belo veículo; a mamãe (advogada), na carona, observa sua beleza refletida na câmera frontal do seu smartphone de última geração; o filho, já adolescente, no banco posterior, acompanha mais um dia normal de aceleradas e freadas bruscas protagonizadas por pais que, como de costume, não se organizaram para o compromisso (estão atrasados). Numa das curvas, o filho bate a cabeça no vidro lateral (ele estava distraído em sua rede social junto ao seu smartphone). Com a batida, o adolescente desacorda por alguns segundos e, na retomada da consciência, desponta em sua mente um misto justiceiro de Buda, Jesus e Sócrates. Sim! Aquele adolescente manipulado agora se observa potencial vítima em veículo acima da velocidade permitida (impaciência/imprudência), mas, nos porões desolados de sua mente, percebe algo em conflito com sua moral e ética familiar. Então, havendo lembrado de que já havia alertado seus pais acerca das condutas no trânsito, ele imediatamente disca os números da polícia e denuncia, à queima-roupa: “Sr. Policial, estou em um veículo de placa tal, cor tal, na rua tal… meu pai está acima da velocidade permitida e minha mãe está conivente. Peço que… [o aparelho telefônico lhe é tomado]”. Adivinhe, leitor, o drama? Declarou-se naquele momento uma guerra familiar, num ambiente de lassidão principiológica, na medida em que o filho teria “enlouquecido”, seria o mais novo dedo-duro no seio afetuoso, ou “desafeto”, na trivial linguagem criminosa. Lançou-se por fim o anátema sobre o herege, e críticas ácidas lhe foram desferidas, tanto pelo pai quanto pela mãe. O embrutecer progenitor fez o filho aprender o que não deveria, mas assimilou a lição, como uma esponja, para sempre. Venceu o lado mais forte e rudimentar na “educação”: os pais.
O presente autor se apaga, retira-se brevemente aos bastidores, para deixar o leitor a sós com sua consciência.
Com aparo de excessos, algumas considerações se impõem.
Não bastassem os riscos enfrentados pela família e terceiros (acidente/vida), eventuais danos materiais destes e daqueles, a integridade do filho, devido à denúncia que estava a fazer, é uma ameaça para os pais — isso mesmo! Os polos do exemplo estão invertidos e corrompidos pela ganância, banhada na honra enxovalhada e na reputação destruída, o que provocará, logo ali, na esquina do tempo, uma “colisão” de ética no ambiente familiar, um calote ético na instituição Família. É claro que esse episódio anedótico sobredito não terá o enredo rebelde aqui exposto pelo autor. Isso porque, deveras, como um antro de vícios, sorvedouro de vidas e de integridade, acabará o filho calado, uma existência passiva, talvez resmungando e aprendendo o hábito dos pais (entre outros tantos), quiçá logo em breve para tirar vantagens do tempo, do fisco estatal, da deficiência alheia, da assistência mercantilizada, de omissões em benefício próprio, hipnotizado em sua “realidade psíquica”.[2] Afinal, aprendemos por associação e repetição, sendo muito difícil a hesitação através da sabotagem no elã de intimidade familiar, que não deixa entrever razões virtuosas, senão de inveja, ganância e orgulho, escamoteadas pelo lucro fácil, pela manipulação do caráter, facejando a iniquidade na vida particular.[3]
Alguém escapará à mesquinhice acintosamente tola e nada alvissareira? Alguém o será, mas somos filhos sintomáticos do nosso tempo, à evidência.
Dando um salto na História, tabus arcaicos principiam tangenciados pelo espírito do tempo, mas a guerra de um filho contra o comportamento antiético dos pais é penosa e atravessa vertiginosa decadência nessa modernidade. Além da guerra, perde-se a bala de prata: o denunciante, porque se rende ao meio em que vive, o que o impede de discernir os próprios erros, aperfeiçoados no inconsciente.[4] Debalde não são os aspectos alteáveis no viés subjetivo, porque suas virtudes e honra são sobrepujadas pela cobiça, pelo sinal trocado de aprendizados envoltos na perspectiva mais afinada com a naturalização de comportamentos errados. É nesse molde que a família hodierna mercadeja uma falsa segurança, na ostentação do que não é, porque, por obscuridade na transparência, esses traços depois vão para outras searas (chicanas fiscais, dilapidação pública), contaminando-as. Assim é, porque sempre foi.
Procurou-se analisar até aqui, com a objetividade que se impõe, a aquiescência aprazível do desencontro ético e do costume na corrupção privada.
Sem semear dúvidas, consoante já se defendeu em linhas outras, a corrupção vem de casa, do berço, da família — e até nas mais instruídas, em que se esperaria bons exemplos, pelo privilégio da educação. Daí é que elas, a corrupção e a família, não ficam na berlinda, nem há o descarte humano. Os atributos de cariz trapaceador são aproveitados na mercancia privada, mas também na seara pública, num emaranhado ainda mais difícil de deslindar, acabando o Estado carcomido por um estrato social que amealha para si uma responsabilidade postiça já na cepa familiar.
Não se trata doravante de uma questão “familiar”, mas de um fenômeno na vida pública. São dúvidas estanques: o agente público tem direito ao silêncio ou fica exposto à execração pública acaso exerça seu dever de denunciar? Seu dever é regra ou é também exceção? O direito fundamental à não autoincriminação seria mais fundamental que o “efeito do silêncio” junto à Administração Pública? Essas indagações permanecem ornamento de atualidade candente.
Esclareça-se: nenhuma das ideias subsequentemente veiculadas devem ser interpretadas como um estímulo à omissão. Pelo contrário, o que se está procurando desenvolver é uma maneira mais detida de se analisar o fenômeno da corrupção em suas consequências, de modo a proteger a saúde do denunciante, minimizando a violência associada ao que lhe vem a reboque.
Imagine-se que seu dever, ao longo de sua função estatal, será surpreendido por uma somatória de efeitos indesejados (represálias): avaliações negativas, descontos financeiros indevidos, punições sem processo, assédios morais e físicos, relações prejudicadas, ameaças de morte e, no fim, uma família enlutada, um caixão, ou pior, sequer um corpo (desaparecido). Denunciar a corrupção pode “ganhar” esses contornos nefastos, como se nota, mas quem suportaria enfrentar esse sofrimento individual e coletivo (família, amigos e afins) munido do postulado do dever em favor de Estado que, em aparente cinismo, desprotege o denunciante?
O autor cá fica irrequieto, porquanto catapulta a noção de que há de se defender a vida, há de se defender o dever igualmente, mas, conforme aqui se destaca, o denunciante cumpre deveres que, depois, o Estado descumpre, conseguintemente, gerando riscos à saúde, à dignidade, à vida e o mais de quem teve o tino inicial de honrar seu dever. O agente público denunciante não se põe como “promotor do mal”, ele simplesmente não deve agir diferente, senão ser a voz do mal que se lhe apresenta indisfarçável. Todavia, sem vida, sequer haverá o exercer do dever por parte do agente público — o agente não mais existirá. Em razão de tanto, reitera-se: qual o sentido da denunciação pelo agente que defende o Estado se este, depois, não respeitará as garantias básicas daquele?
Homem de seu tempo, o ora autor é pessoalmente contra a omissão de qualquer dever, mas aqui juridicamente pode ser objeto de discussão, por ter ele, o autor, conhecimentos operacionais acerca da denunciação. Necessária, então, outra situação pitoresca, para fins didáticos:
Suponha-se que o episódio feérico nesse momento seja o de um agente público que cumpriu seu dever junto à Administração Pública, mas que desta passou a receber retaliações que culminaram com danos à integridade física e psicológica devido a denúncias, que — atente-se — aquele não poderia se furtar de fazer. O agente público então se encontra afastado de suas atividades por recomendação médica, mas a autarquia da previdência (INSS), dependendo do humor do perito, ora entende negado, ora aprovado o mesmo quadro clínico que outros especialistas apontam ser de necessário afastamento laboral. Nesse hiato, o agente denunciante acaba sem receber qualquer condição financeira do Estado que lhe acossou, tornando-o enfermo, tampouco da autarquia previdenciária (ente público). Constatação da vida “sem crachá”: tortura psicológica — não é quiproquó —, submissa a sofrimento denso e árido, vez que, ou o agente retorna ao labor insalubre para sua condição de saúde, ou cai no fosso da ilusória convalescença, por lhe faltarem recursos financeiros, ricocheteando ainda a dor da culpa, como grilhões da depressão.
Anamnese do autor à parte, poréns são necessários.
A título de “autópsia psicológica” do denunciante — engenharia reversa da denunciação —, não há opção ao agente público, a não serem nas paredes mudas do seu quarto, de calar reveses por ter feito o que seria justo e esperado: seu dever. Ou ele cumpre este dever e recebe os efeitos eventualmente fulminantes disso; ou ele se omite sem cumprir o mister, estéril em relação com o interesse público, desfrutando do interesse privado patente dessa comodidade (talvez por medo do imbróglio sobredito). Isso é, dever não é faculdade, do contrário — perdoe-se a obviedade — dever não seria.
Raciocínio dedutivo do estímulo à omissão pela tortura psicológica supradita:
Premissa 1: a maioria dos agentes públicos deseja estabilidade, um “porto seguro”, no serviço estatal.
Premissa 2: a quase totalidade, mesmo ciente do crime — sob a pecha de suspeição (pelo não fazer) —, prefere não correr riscos no ambiente laboral.
Premissa 3: muitos entendem que os resultados/cargos/promoções/metas são atingidos em prejuízo da ética.
Premissa 4: poucos se aventuram a denunciar, sabidas as consequências disso na vida particular (vergonha, medo, privações etc.).
Premissa 5: o agente que recebeu retaliações do Estado, não sendo por este protegido, dificilmente terá condições de, em sua convalescença, suplantar, atolado em dívidas, o quadro deplorável de saúde.
Conclusão implícita nas premissas: os demais agentes públicos, mormente o próprio denunciante vitimado, pusilânimes e temerosos estarão na conduta de denunciar. De se ver o agente público persuadindo-se a si próprio, convencendo-se da necessária conivência, geralmente recidiva, com o fito de não renunciar à sua dignidade, saúde, autodeterminação, liberdade, tentando, pois, fugir de contingente tortura psicológica etc., dado que são Direitos Humanos Fundamentais.
Quando seria esperado um dever funcional seguido de agir estatal protetivo cheio de pompas, na verdade, o denunciante se torna senhor de seu destino, um títere aos comandos do Estado, que promove o agente público a merecedor das consequências do dever de não se calar para a corrupção. Como uma centelha inicial, portanto, está-se a frear boas condutas na Administração Pública, em vista da desproteção do denunciante. Assim é que aos poucos o funcionalismo público prefere não cair no limbo protetivo estatal, pois defender o Estado implicará aceitar a grande possibilidade de ofensa irreversível a direitos basilares do indivíduo.
Em visceral compreensão: se o denunciante não silencia para seu dever de proteger a Administração Pública, o Estado, havendo normas para amparar o agente público, fica emudecido e canhestro perante o direito à integridade física e psíquica de seu defensor. Assim, sendo o defendido (Administração Pública) a própria causa dos males que suporta o denunciante defensor, não poderia colher proveito de sua torpeza desamparando o obreiro combalido. Simples: fazer o porta voz da denúncia depender da presteza do Estado que denunciou não parece juridicamente alinhado, especialmente pela razão de que haverá uma série de instituições envolvidas. Cada uma defendendo seus pares, cada qual tentando demover de si a responsabilidade, alinhando seus esforços para proteger agentes privilegiados (gestores, promotores, juízes, diretores, conselheiros etc.).
O vulnerável denunciante é o quê? Sem defesa jurídica, saúde abalada, psique comprometida, finanças malogradas, enfraquecido em seus direitos, ele será objeto de manipulação estatal, lavagem cerebral patrocinada por agentes da Administração Pública, uma espécie de tortura velada que prenderá o denunciante ao sistema que lhe sufoca (um surto de agentes omissos, alienados).[5]
Já dizia Gerry Zack que integridade “é fazer aquilo que é impopular, mas é certo, diante de imensa pressão e ainda que todos estejam observando”. Contudo, sob o expediente comum de pressão, será mesmo a integridade, no viés de segurança jurídica, de confiança legítima e de boa-fé que envolve o agente público sob o olhar do administrado, tão mais fundamental que os Direitos Fundamentais que o próprio denunciante deixará de fazer jus? Está-se a descrever um denunciante que é objeto e instrumento ao mesmo tempo. É objeto (sujeito sem efetivo direito) pela desproteção estatal; e é instrumento (evoca seu dever) para defender o Estado da corrupção.
Tal qual Rousseau deitou falação, ganhou monumento histórico o viés de contrato social, ou utilitarismo, sustentando disso o supedâneo no pacto entre os homens, com o condão de que estes façam ceder parte de sua liberdade e direitos em vantagem da incolumidade coletiva.[6] No entanto, volta-se ao ponto em debate: sabendo da faltosa proteção pelo Estado, o denunciante deve renunciar a seus Direitos Fundamentais para servir ao interesse público, simplesmente para combater a corrupção? Constituiria um acinte entregar sua legítima defesa (direito ao silêncio) nas mãos de um Estado que precisa ser denunciado por não proteger o denunciante? Desimportantes seriam os Direitos Humanos do denunciante retaliado — árbitro de si — devido a um Estado omisso?
Evitando as demasias, é aqui que o autor propõe um intervalo na escrita para o fim de, na próxima oportunidade, revestir suas palavras de uma certa sutileza acerca do suicídio assistido, não anulando a purgação de estereótipos e corolários de um agente público que não trabalha para os “interesses velados” das instituições/entes/órgãos estatais, mas para o interesse público, somente.
[1] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 39.
[2] FIORELLI, José Osmir. Psicologia Jurídica. 11. ed. rev. atual. e reform. São Paulo: Atlas, 2021, p. 1. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597027990 Acesso em: 12 jul. 2021.
[3] SOUZA, Marcia Cristina Gonçalves de. Conduta ética e sustentabilidade empresarial. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020, p. 7. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555200751/. Acesso em: 29 jul. 2021.
[4] FIORELLI, José Osmir. Psicologia Jurídica. 11. ed. rev. atual. e reform. São Paulo: Atlas, 2021, p. 4. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597027990. Acesso em: 12 jul. 2021.
[5] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 346.
[6] PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio; PENTEADO, Nestor Sampaio. Manual Esquemático de Criminologia. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 16. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555595291/. Acesso em: 12 jul. 2021.
Autor
- Elton Rockenbach Baron – Bacharelando em Direito, Empregado Público Estadual e aspirante a Promotor de Justiça.