Judiciário
Imunidade de jurisdição estatal em caso de violação de direitos humanos
Análise do caso Changri-lá
Em julho de 1943, em pleno andamento da II Guerra Mundial, o barco de pescadores Changri-lá foi alvo de disparos de canhão realizados pelo submarino nazista U-199, nas proximidades da costa de Cabo Frio. O barco foi destruído e os dez pescadores que o tripulavam, mortos. Posteriormente, o submarino foi abatido pela Força Aérea Brasileira e seus tripulantes capturados. Transferidos para os EUA, foram interrogados e confessaram o ataque ao barco Changri-lá.
Todavia, somente em 2001 os familiares dos pescadores tomaram ciência dos depoimentos que confirmaram a destruição do barco brasileiro, o que ensejou pedido de revisão ao Tribunal Marítimo e o reconhecimento formal do ataque como causa do afundamento da nau.
Assim, netos de Deocleciano Pereira da Costa, um dos tripulantes do pesqueiro, ajuizaram, perante a Justiça Federal, ação de ressarcimento de danos contra a República Federal Alemã. A sentença de 1º grau extinguiu a demanda sem julgamento de mérito, ao entendimento de que o ataque seria um ato de império do Estado alemão, protegido pela imunidade jurisdicional.
Interposto recurso ordinário ao Superior Tribunal de Justiça, foi mantida a decisão, ao entendimento de que a “jurisprudência do STJ caminha no sentido de que não é possível a responsabilização da República Federal da Alemanha por ato de guerra, tendo em vista tratar-se de manifestação de ato de império.”[1]
Os autores, irresignados, recorreram ao Supremo Tribunal Federal, o qual, em agosto de 2021, “por maioria, apreciando o tema 944 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para, afastando a imunidade de jurisdição da República Federal da Alemanha, anular a sentença que extinguiu o processo sem resolução de mérito, fixando a seguinte tese: “Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição”[2]
Para tanto, a Corte destacou a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (CF/88, art. 4º, II), e que os atos praticados pela Alemanha, ainda que durante a Guerra, são ilegítimos e violadores de princípios gerais de direito humanitário. Asseverou, também, que o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg enumera como “crimes de guerra” as violações das leis e costumes bélicos como, por exemplo, o assassinato de civis.
Registrou, ademais, entendimento no sentido de que a ofensa a normas de jus cogens não pode ser caracterizada como ato de jus imperii e, ainda que o fosse, a imunidade jurisdicional não seria aplicável, uma vez que afrontaria normas de natureza peremptória, devendo, pois, prevalecer os direitos humanos.
Observa-se que a posição majoritária firmada pelo Supremo Tribunal Federal é bastante inovadora na seara internacional. Isso porque, até o momento, predomina o entendimento de que não há possibilidade de afastar a imunidade de jurisdição de um Estado estrangeiro quando este pratica um ato de império, notadamente no contexto de um conflito armado, ainda que esse ato danoso tenha sido praticado no Estado do foro (onde ajuizada a demanda) e tenha violado direitos humanos.
A principal referência no âmbito internacional sobre a matéria é o paradigmático caso Imunidades Jurisdicionais do Estado[3], proposto pela Alemanha em face da Itália perante a Corte Internacional de Justiça. A Alemanha apontou violação do direito internacional por parte do Estado italiano, uma vez que o Poder Judiciário da Itália teria afastado a imunidade do Estado alemão em uma ação judicial indenizatória proposta por Luigi Ferrini, que, à época do Terceiro Reich, teve seus direitos humanos violados ao ser deportado para o território alemão e ali submetido a trabalhos forçados.
A CIJ, por maioria, acolheu o pedido alemão e concluiu que a imunidade estatal por atos de império continuaria a ser aplicada a processos cíveis em relação a condutas que causem morte, lesão individual ou danos a propriedade cometida pelas forças armadas e outros órgãos de um Estado durante um conflito armado, mesmo que os atos relevantes ocorram no território do Estado do foro.
A decisão da CIJ foi embasada não só no costume internacional – após análise de decisões domésticas dos Estados mantendo a imunidade nesses casos – mas também em fontes convencionais de direito internacional. Nesse sentido, o art. 31 da Convenção Europeia sobre Imunidades do Estado dispõe que esta não será relativizada nos casos de atos ou omissões de suas forças armadas praticadas no Estado do foro[4].
Com efeito, embora não haja previsão semelhante na Convenção sobre Imunidades Jurisdicionais do Estado e de Seus Bens das Nações Unidas, a Comissão de Direito Internacional, ao comentar o art. 12, concluiu pela impossibilidade de flexibilização da imunidade em situação envolvendo conflitos armados[5].
A alegação italiana de que o reconhecimento da imunidade afrontaria normas de jus cogens e de proteção dos direitos humanos não foi acolhida pela CIJ, tendo a Corte afirmado que se trataria de regras independentes, com objetivos diversos: a imunidade versaria sobre procedimento, ao passo que o jus cogens consubstanciaria regra de direito material.
De fato, o reconhecimento da imunidade estatal não implica fulminar o conteúdo valorativo da norma de jus cogens ou mesmo negar a sua existência, pois, quando se reconhece a imunidade a outro Estado, não há concordância do Estado do foro com o ato violador, mas, apenas, aplica-se uma norma de direito consuetudinário assentada e pacífica no seio da comunidade internacional de que iguais não podem julgar iguais quando se trata de atos soberanos.
É importante abordar, ainda, o relevante argumento tecido pelo STF de que atos violadores de direitos humanos, por ofenderem gravemente a ordem jurídica internacional, não caracterizariam atos de império, posição que também foi defendida por Cançado Trindade em seu voto dissidente na CIJ.
Observa-se que esse entendimento, conquanto vise garantir a primazia dos direitos humanos, acaba por criar uma nova categoria de ato estatal, dissociada da noção de soberania.
Nesse sentido, utilizar a gravidade do ato como critério suficiente para desprovê-lo de proteção perante a ordem jurídica de outro Estado acaba por mitigar o próprio instituto da imunidade, conforme apontado pelo Secretariado das Nações Unidas: “se atos ilegais ou crimes fossem considerados não ‘oficiais’ para fim de imunidade material, a própria noção de ‘imunidade’ perderia muito de seu significado”[6].
Por fim, vale destacar que o reconhecimento da imunidade de jurisdição, em situação de violação de direitos humanos não atenta contra o direito de acesso à justiça da vítima. No emblemático caso Al-Adsani, em que o Reino Unido foi acionado na Corte Europeia de Direitos Humanos por ter reconhecido a imunidade do Kuwait em relação a atos de tortura praticados no território kuaitiano em desfavor de Al-Adsani, a Corte Europeia proclamou que o reconhecimento da imunidade não implicaria uma restrição desproporcional do direito do acesso à justiça. A mesma posição foi endossada pela Corte de Estrasburgo nos casos seguintes – The McElhinney v. Irlanda (2001), Fogarty v. Reino Unido (2001), Kalogeropoulou e outros v. Grécia e Alemanha (2002), Jones v. Reino Unido (2014).
Assim, conquanto se entenda bastante louvável a posição do STF sob a ótica de acesso à justiça e dos direitos humanos, há de se pontuar que jurisprudência internacional predominante tem se posicionado de maneira diversa que acaba dando amplo reconhecimento à imunidade estatal, até porque a norma costumeira está imbuída de valores de grande importância para a comunidade internacional, na medida em que privilegia a estabilidade jurídica entre os Estados, evitando atritos diplomáticos e, talvez, conflitos mais sérios no futuro.
Nesse sentido, uma solução mais harmônica para o problema posto no caso Changri-lá seria, ao invés de se acionar a Justiça brasileira, buscar, primeiramente, a reparação dos danos na jurisdição do Estado infrator ou, em caso de insucesso, perante os tribunais internacionais ante os quais o Estado infrator, no caso, a Alemanha, poderia ser responsabilizada.
[1] STJ – AgRg no RO 129 / RJ
[2] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4943985>.
[3] Jurisdictional Immunities of the State (Germany v. Italy: Greece intervening), p 40.
[4] Article 31. Nothing in this Convention shall affect any immunities or privileges enjoyed by a Contracting State in respect of anything done or omitted to be done by, or in relation to, its armed forces when on the territory of another Contracting State.
[5] Yearbook of the International Law Commission, 1991, Vol. II (2), p. 46, para. 10
[6] Memorandum by the Secretariat, p. 105. Disponível em: <http://legal.un.org/docs/?symbol=A/CN.4/596>. Acesso em 08 de maio de 2018.
AUTOR
THIAGO LINDOLPHO CHAVES – Advogado da União junto ao Departamento de Assuntos Internacionais da Advocacia-Geral da União, pós-graduado em Direito e Jurisdição pela AMAGIS/DF e em Direito Internacional pelo CEDIN, com curso de extensão na Academia de Direito Internacional da Haia.
TONNY TEIXEIRA DE LIMA – Advogado da União e coordenador de Controvérsias internacionais do Departamento de Assuntos Internacionais da Advocacia-Geral da União, pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera – UNIDERP.